A Terra levanta-se!
Autonomia, campesinato e lutas climáticas

CIDAC

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No dia 25 de março de 2023, perto da aldeia de Sainte-Soline, pequena localidade rural do Oeste francês, cerca de 30.000 pessoas reuniram-se em oposição a um projeto de açambarcamento de um bem comum essencial, a água. Confrontados com situações repetidas de seca extrema resultando da crise climática, agrupamentos de agricultores/as regantes, atores da produção intensiva de beterraba-sacarina, horto-frutícolas, cereais e oleaginosas, optaram, com apoios do Estado, da indústria sementeira e de sindicatos de grandes produtores agrícolas, pela construção de mega-reservatórios de água enchidos por bombagem invernal dos lençóis freáticos. Em Sainte-Soline, esta reserva de água representa 700.000 metros cúbicos (cerca de 180 piscinas olímpicas) e estende-se por 10 hectares. O projeto global prevê a construção de 16 infraestruturas deste tipo na mesma região. Nenhum questionamento sobre o modelo intensivo de produção ou sobre a finalidade da produção e da agricultura de modo geral, nenhuma atenção à urgência climática, simplesmente a necessidade de compensar a falta de chuva através da privatização, por uma minoria, dos aquíferos… Business as usual

A mobilização destas 30.000 pessoas resulta, entre outras1, da ação de um movimento criado em janeiro de 2021, Les Soulèvements de la Terre (Os Levantamentos da Terra), fruto da convergência entre lutas climáticas, movimentos autónomos e organizações camponesas e construído no prolongamento da experiência da ZAD de Notre-Dame-des-Landes2. Les Soulèvements de la Terre conjugam a luta pelo clima com a luta anti-capitalista e concentram os seus esforços contra a agro-indústria.

Mega-reservatórios, agro-indústria, mas o que é que isto tudo tem a ver com a crise climática?

A agricultura é responsável por 22% das emissões de Gases de Efeitos de Estufa (GEE)3, nomeadamente o metano oriundo da criação intensiva de gado, o protóxido de azoto associado à adubação dos solos e o dióxido de carbono induzido pela mecanização ou pela queima de florestas para monocultivos, como é o caso da soja ou do cacau, entre muitos outros. Quando falamos de agricultura, neste caso, é obviamente da agricultura intensiva, industrial, extrativista de que se trata!

O modelo agrícola extrativista caracteriza-se pela corrida aos rendimentos altos, e consequentemente, lucros altos, abusando sistematicamente do meio ambiente e da força de trabalho. Implica níveis cada vez mais altos de mecanização e de automatização, recurso intensivo aos adubos químicos e à privatização da água, como podemos ver no caso da construção dos mega-reservatórios. Poluição dos solos, do ar, privatização da água, degradação da qualidade da alimentação, dizimação dos insetos pelos pesticidas, este modelo assenta em grande parte na pilhagem dos comuns.

1 A luta contra este projeto iniciou-se em 2017 através de mobilizações, protestos e ações cidadãs levadas a cabo por coletivos locais que se reuniram no seio da organização Bassines, non merci! No bassaran! (“bassine” é o nome dado a estes mega-reservatórios, em francês) muito ativa na luta de Sainte-Soline. A Confédération Paysanne, sindicato camponês membro do movimento internacional La Via Campesina esteve também muito envolvido na concretização desta ação de protesto.

2 ZAD – Zona A Defender – A ZAD de Notre-Dame-des-Landes é um espaço de luta, juntando populações locais, ambientalistas, organizações camponesas e movimentos altermundialistas contra um projeto de aeroporto na região de Nantes, constituiu uma experiência de grande amplitude de criação de uma zona de autonomia baseada em princípios anti-capitalistas e não-autoritários, entre 2009 e 2018.

3 CLIMATE CHANGE 2023 report do IPCC.

4 “Relatório sobre a renovação geracional nas explorações agrícolas do futuro na UE” – Comissão da Agricultura e do Desenvolvimento Rural – Relatora: Isabel Carvalhais.

5 Emissões do setor de construção civil atingiram recordes em 2019. Relatório da ONU.

 

 

 

Este modelo implica também um aumento exponencial das superfícies cultivadas através da ávida aquisição de terras, uma tendência que ameaça intensificar-se nos próximos anos, particularmente na UE. Por exemplo, a população de agricultores/as envelhece e a renovação geracional, por sucessão ou por via da instalação de novos/as agricultores/as não permite compensar as saídas para a reforma4. Em consequência, muitas terras vão mudar de mão nas próximas décadas. O problema é que o que poderia representar uma oportunidade de acesso a terra para pequenas explorações familiares e camponesas, não passará de um massivo açambarcamento de terras, na senda do que já acontece hoje em dia, pela indústria agrícola, altamente emissora de GEE, entre outros modos de depredação.

Este fenómeno de concentração do fundiário agrícola em benefício de poucos atores agro-industriais complexifica-se ainda mais com a intervenção de atores meramente financeiros neste campo. Esta financiarização da agricultura, em andamento há já algumas décadas, em particular nos países do Sul geopolítico mas não exclusivamente, intensifica-se e traduz-se pela aquisição de ativos agrícolas por empresas que não estão ligadas ao setor agrícola ou por entidades da esfera especulativa, como os fundos de pensões ou de investimento, transformando os campos em fábricas estritamente vocacionadas para a produção de dividendos, através da elaboração de mercadorias que ainda apelidam, sem uma certa dose de ironia, de alimentos…

A pressão sobre o fundiário agrícola não se limita à intensificação da agricultura extrativista, mas estende-se até ao fundamental paradoxo de separá-lo da sua vocação, mesmo que deturpada, de produção, convertendo-o em investimento imobiliário! Assim, este fenómeno de financiarização rima com artificialização dos solos, impermeabilização, betonização, através da reconversão de terras agrícolas em centros comerciais, aeroportos, loteamentos para vivendas, urbanização dos espaços entre as cidades num continuum megalopolitano. O betão é o segundo produto mais consumido no mundo, depois da água, e as emissões de GEE da construção civil rondam os 38% do total das emissões mundiais de Co25!

Perante este panorama, em que a realidade se funde na distopia, Les Soulèvements de la Terre, à imagem de outros movimentos e coletivos ativos noutros países, articulam várias formas de luta complementares, entre elas:

1 – Bloquear e desmantelar prioritariamente 3 setores industriais – o setor cimenteiro, do betão, o setor dos pesticidas e o dos adubos de síntese, químicos. Os vários coletivos que compõem Les Soulèvements de la Terre, na última campanha contra o betão realizada entre 9 e 12 de dezembro de 2023, bloquearam o acesso a fábricas, desarmaram infraestruturas, ocuparam terras prometidas à artificialização6, picharam símbolos da betonização, num conjunto de iniciativas de desobediência civil. Em imagem e música, aqui!

2 – Retomar as terras – das mãos de quem as poderá açambarcar, terras ameaçadas, abandonadas, livres de uso… Nesta linha, Les Soulèvements de la Terre levam a cabo ações de ocupação de terras sujeitas a processos de artificialização, apoiam ou dinamizam a criação quintas e cultivam, ou procedem a compras coletivas de terras incentivando a propriedade e gestão coletivas. Numa aliança entre duas modalidades de luta, por exemplo, um grupo local da cidade de Besançon, no Leste da França, ocupou um amplo terreno, ainda livre, no meio de um mega-projeto urbanístico e construiu um processo que deu lugar à criação, por um lado, de uma AMAP7, chamada AMAPirata, dedicada a produzir alimentos para as populações do bairro, e por outro lado, a jardins populares permitindo uma reapropriação coletiva de espaços produtivos.

3 – Pôr os poderes políticos sob pressão, ocupando os espaços de decisão, numa vontade de restituir às/aos habitantes e aos camponeses e camponesas o direito de decidir nos processos de atribuição e de uso das terras e da água.

6 Por artificialização, entende-se a cobertura dos solos com betão ou asfalto (impermeabilização), mas também as profundadas transformações dos solos e dos meios naturais que alteram as suas funções vitais, como no caso dos campos de golfe, das estações de esqui, das barragens, dos campos militares… A iluminação artificial também se inscreve neste processo, ao alterar os ciclos diurnos e noturnos dos meios naturais.

7 Associação para a Manutenção de uma Agricultura Camponesa (de Proximidade na versão portuguesa) – são associações, formais ou informais que constituem uma aliança solidária entre quem consome e quem produz. Muito desenvolvidas em França, têm a sua origem nos teikei do Japão. Para saber mais sobre esta realidade em Portugal, ver aqui.

Mas voltemos, por um instante, ao início, em Sainte-Soline, o seu mega-reservatório e as suas 30.000 pessoas numa manifestação pacífica. Na sua chegada ao local da obra, uma cratera de 10 hectares, com 10 metros de profundidade, ladeada de montes de terra de 10 metros de altura, a manifestação encontrou 3200 agentes das forças armadas altamente equipados. 3200 agentes para defender um buraco. Uma tentativa dos e das manifestantes de furar o cerco desencadeou uma resposta das forças de segurança de uma violência raramente vista em França. 4000 munições, entre granadas lacrimogéneas, granadas de fragmentação com submunições de borracha, balas de borracha foram usadas num lapso de uma hora e trinta minutos. Balanço: 200 pessoas feridas, 40 gravemente feridas e uma entre a vida e a morte8. Observadores e observadoras independentes (deputados/as, membros da Liga dos Direitos Humanos…) testemunharam a recusa das forças policiais em ativar a urgência médica, atrasando, por exemplo, a vinda atempada de um helicóptero do INEM…

Na sequência da ação de Sainte-Soline, o Ministério da Administração Interna francês desencadeou um processo de dissolução dos Soulèvements de la Terre, pronunciado por decreto pelo Presidente Emmanuel Macron no dia 21 de junho de 2023. Na sequência de múltiplos recursos, o Conselho de Estado anulou a decisão de dissolução, afirmando que “um apelo à violência contra bens materiais não justifica uma dissolução”. Notamos que durante este processo, altamente mediatizado, Les Soulèvements de la Terre e os seus núcleos locais ganharam mais 50 000 membros. Cresceu o enxame apesar dos pesticidas!

Este caso vem exemplificar um fenómeno mais global de criminalização da ação climática, das lutas ecológicas e camponesas, cada vez mais adjetivadas de “eco-terroristas”. Os e as ativistas de organizações que promovem ações não-violentas de desobediência ou de resistência civis, como Extinction Rebelion, Just Stop Oil, ou mais próximo de nós, Climáximo, são cada vez mais frequentemente convidados/as a sentar-se nos tribunais e condenados/as, para servirem de exemplo e desincentivar outras pessoas a agir. Não esquecemos que é pelo recurso à desobediência civil que as mulheres obtiveram o direito de voto no Reino Unido, em 1928, ou que foi a via usada pelo Movimento dos Direitos Cívicos nos Estado Unidos, nos anos 50, ambos os movimentos reprimidos na altura.

Falando de criminosos/as, no dia 4 de dezembro de 2023, o Conselho Nacional de Proteção da Natureza – CNPN, uma instituição ligada ao Ministério da Transição Ecológica francês, declarou num parecer público que as obras de Sainte-Soline violavam a regulamentação sobre as espécies protegidas, sendo um local de nidificação de uma ave em via de extinção, o sisão. Todas as autorizações dadas pelo Estado ignoraram os procedimentos obrigatórios para a concessão de licenças ligadas às Zonas de Proteção Especiais e as obras realizadas destruíram áreas importantes de repouso e de alimentação desta espécie. Eco-terrorismo?

Se avaliarmos a pertinência de uma causa e a eficácia das suas formas de luta à luz da violência com a qual é “legalmente” reprimida, haverá do lado dos Soulèvements de la Terre, e das suas congéneres um pouco por todo o lado no mundo, algumas pistas que merecem toda a nossa atenção, e porque não, a nossa participação.

 

8 Serge D. foi atingido por uma granada GM2L na cabeça. Ficou 1 mês em coma, 6 semanas em reanimação e segue, até hoje, em processo de recuperação. Prótese craniana, surdez permanente, perda de visão, perda de equilíbrio… Armas Não-Letais? Eventualmente…

Para saber mais:

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