Este texto resulta de uma entrevista realizada pelo CIDAC, em novembro de 2023 em Bissau, a Miguel de Barros, sociólogo, investigador e diretor executivo da ONG guineense Tiniguena.
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Ultimamente, a questão das mudanças climáticas entrou como um apanágio não só para o alargamento de lógicas neocoloniais e geoestratégicas, mas também como um subterfúgio para uma nova abordagem das modalidades de cooperação e de financiamento dito “limpo” ao nível por exemplo do Sul, mas que no fundo agregam três questões fundamentais.
Em primeiro lugar, a questão da manutenção da pobreza. Em segundo lugar, a questão da dependência económica face aos modelos de desenvolvimento do capital – um dos exemplos mais específicos é a questão da importação da tecnologia e toda a assistência associada. E, em terceiro lugar, a substituição da capacidade produtiva sobretudo de alimentos para bens não alimentícios. Isso tem criado muitas situações de tensão, por exemplo, sobre as questões ligadas à energia limpa, mas para as quais não se fazem estudos cabais que permitam aproveitar o potencial existente a nível local mas sim a nível da transferência de tecnologias. A Guiné-Bissau tem, por exemplo, sete meses de chuva, no entanto não se fala em sistemas de retenção da água e de valorização da nossa carga pluviométrica, e nem se fala de energia solar e como é que nós podemos aproveitar a quantidade de sol que temos para a sua produção. Mas rapidamente pensa-se em avançar para um sistema muito sofisticado sem, no entanto, termos toda a estrutura local que permita sustentar essa transição energética.
Mas, para mim, o elemento mais crítico, é a ilusão que temos em relação à negação entre a mudança climática e a questão da produção económica que tem a ver com o consumo, de que ninguém fala. Nós não podemos ter um sistema produtivo, um sistema económico justo, se os padrões de consumo no Norte não se alterarem. Ou seja, o consumo de energia, o consumo em termos de combustíveis fósseis, o consumo em termos da produção nuclear, e de outros bens e serviços não mudaram no Norte. Portanto, aquilo que está a ser vendido aos países do Sul, como por exemplo trabalharem agora para taxas de retenção de carbono, não leva a nenhuma transformação, porque está a ser pedido um esforço de conservação ao nível local, quando aquilo que nós vendemos não muda o padrão de consumo. O padrão de consumo continua. A Guiné não tem indústrias, não emite. Então há quem venha comprar a percentagem de emissão de que a Guiné-Bissau tem direito, – olhem só a retórica: “o direito de emissão” que nem deveria ser nesta perspetiva … Nós temos o direito de preservação, não de emissão de dióxido de carbono. Mas há agora uma corrida muito forte no sentido de pedir a países como a Guiné-Bissau que vendam as suas quotas de emissão para receberem em contrapartida algum dinheiro para o apoio orçamental. Isso não leva à construção da sustentabilidade, nem nos garante que há uma transição em termos de padrões de comportamento que respeite tudo aquilo que têm sido os desgastes que nós estamos a provocar a nível rural. Por isso, se o padrão de consumo, tanto em termos de produção como de consumo energético no Norte, corresponder também àquilo que são os processos da educação para o consumo responsável e, ao mesmo tempo, salvaguarde aquilo que é o princípio das contribuições das sociedades de economias não poluentes, não se alterar, será muito difícil conseguirmos uma sustentabilidade tanto ambiental como económica.
Sim, nós temos a vários níveis. Nós temos processos mais acelerados, por exemplo, nas zonas onde houve maior incidência de uma exploração selvática dos recursos naturais, onde há uma forma muito evidente de alterações tanto na forma de ocupação do solo, como na produção agrícola, e no sistema cultural. Posso dar três exemplos. A região de Oio, hoje, não tem florestas primárias. Isto porque, durante o período de vigência do governo que saiu do golpe de Estado de 2012, houve concessões de licenças para exploração da floresta sem nenhum respeito pelo quadro legal existente e sem nenhuma organização do ponto de vista da sustentabilidade da própria exploração. O país exportou toros quando podia fazer transformação de madeira local (em contraplacados, para depois esses contraplacados saírem), mas não houve igualmente nenhum plano de reflorestação e o mais gritante é que se exportou madeira com o inventário do património florestal de 1986. Nós estamos a vender uma quota-parte que não existe, porque os mecanismos de exploração não respeitaram nem o caderno de encargos e muito menos o princípio da própria sustentabilidade. Mas o que é curioso é que essas zonas são de florestas primárias, com caraterísticas para a exploração de produtos silvestres, são espaços sagrados, são espaços de rituais, são espaços que a própria comunidade utiliza também para o acesso a todos os serviços ecossistémicos que são a base da sua economia e que, ao mesmo tempo, oferecem a possibilidade de fixação em termos de criação de gado, em termos de produção cerealífera. Mas, neste momento, esses povos estão a ser obrigados a exilarem-se para as cidades porque já não conseguem fixar-se nessas zonas, porque também com a proximidade dos rios e a subida do nível da água do mar já não têm capacidade de travar as inundações para que não cheguem aos seus campos.
Quando olhamos também, ainda no norte, para a zona de Farim, onde foi explorado o fosfato, vimos claramente que os níveis de temperatura, com os quais estas comunidades estão agora a confrontar-se, estão a obrigar não só a saírem daquilo que eram os seus sítios privilegiados de produção e que foram zonas de exploração desses recursos, mas também e o mais grave, tiveram que abandonar o sistema ecológico de produção e também de construção das suas habitações, que eram à base de argila, de blocos orgânicos, com o colmo, com cibis1. Esses projetos, como recompensa, deram-lhes chapas de zinco de baixa qualidade. Assim retirou-se a comunidade do seu sítio de produção. Agora não têm quintais, não têm espaços de pastagem, não têm espaços de pesca, e estão com construções precárias, num espaço muito mais pequeno e com altos níveis de temperatura, porque o zinco não consegue isolar o calor.
1 Uma palmeira com madeira imputrescível, muito usada na construção.
Mas vamos olhar para o caso dos Bijagós, onde há uma indústria selvática do turismo, que está a colonizar territórios, e a obrigar a comunidade local a abandonar as zonas sagradas, exatamente na zona costeira, onde tinham práticas que permitiam o repouso biológico do solo e que também permitiam uma transição entre a zona costeira, a zona de savana e a zona de produção agrícola. Nessas zonas todas foram agora implantadas infraestruturas do turismo, sem respeito pela orla marítima. Isso está a obrigar as comunidades a ficarem, não só mais vulneráveis do ponto de vista climático, mas obriga-as a deslocações, que já não são deslocações sazonais para fins agrícolas, mas torna-as pessoas que são agora “migrantes” dentro do seu próprio território; privados dos recursos económicos, e ainda por cima sem proteção social.
Então, quando analisamos esses fenómenos podemos encontrar, por um lado, a aceleração dos efeitos naturais em termos das manifestações da vulnerabilidade do clima, que tem uma incidência forte com a ação humana exatamente porque o Estado não consegue proteger as comunidades, os seus espaços, os seus territórios privilegiados, que permitam ter uma relação muito mais ecológica e duradoura na relação com o seu próprio território, com a sua ancestralidade, com a sua espiritualidade e com uma economia mais perene. Isso coloca-os perante um sistema onde não são donos da sua terra, não têm capacidade produtiva, estão dependentes de um serviço sazonal ligado ao turismo e, ao mesmo tempo, não têm nenhum vínculo laboral que gostariam de ter, nem alguma garantia de reivindicação de seus direitos. A combinação dessa forma de expropriação dos recursos, com impacto forte ao nível do clima, está a gerar mais pobreza, maior insegurança humana.
Falavas há pouco dos fosfatos. Essa exploração é essencialmente para alimentar a produção de adubos químicos, que alimentam a agricultura intensiva no Norte geopolítico. Quem são os atores que estão por trás da exploração de fosfatos na Guiné-Bissau?
Nós tivemos vários grupos. O processo de organização das multinacionais para chegarem a contextos de fraca capacidade em termos de fluxo económico, como a Guiné-Bissau, coloca-se mais ao nível de qual é a qualidade da matéria-prima que pode oferecer. Por exemplo, a Guiné-Bissau é um grande produtor de castanha-de-caju, exporta castanha-de-caju, não produz a quantidade nem de Moçambique nem da Costa de Marfim mas o seu produto biológico tem uma qualidade forte. É a mesma coisa também com o fosfato, a bauxite, a areia pesada e afins. Nós tivemos, por um lado, multinacionais americanas que depois subcontrataram multinacionais sul-africanas para atuarem na zona e tivemos também multinacionais francesas que contrataram multinacionais de capitais africanos para virem trabalhar na zona. Há um fenómeno que é chamado racismo ambiental, que vem enfraquecendo, empobrecendo e, ao mesmo tempo, também colocando numa situação de estado de sítio todos os atores, onde quem presta serviço é só um elemento da cadeia, mas não é detentor do próprio recurso. O que faz com que essas comunidades locais acabem por ser reféns dessa cadeia.
Agora, há elementos bons. Os elementos bons que nós tivemos aqui, no caso de Farim, foi a associação de filhos e amigos da localidade onde estavam a ser explorados esses recursos que se organizou, mobilizou-se e, hoje, graças à sua pressão (como também dos que estão com a areia pesada, em Varela) foi possível, com a intervenção de organizações como a Tiniguena, e a existência da lei de reassentamento das comunidades locais. Graças à pressão de organizações como as nossas, passaram a existir audiências públicas para atribuição de licenças de exploração baseadas naquilo que a Lei de avaliação de impacto ambiental obriga.
Mas também esse elemento deu força às próprias comunidades que começaram a reivindicar um estatuto comunitário, para que o Estado reconheça não só o direito de gestão dos seus espaços e recursos, mas também a legitimidade das suas formas de gestão anteriores ao Estado moderno que nós conhecemos. Daí que a lei da floresta comunitária permitiu que as mulheres na região de Oio (sobretudo ao nível das florestas comunitárias em que a KAFO2 intervém), que estavam a trabalhar na zona de Djalicunda, conseguiram aprisionar os equipamentos dos chineses que tinham ido lá explorar a floresta. Isso com a conivência dos delegados da floresta local, que não tiveram nenhuma autoridade perante os chineses, mas as mulheres dessas matas sagradas conseguiram aprisionar e apreender todos os equipamentos fazendo com que, hoje, essas matas estejam conservadas. Os níveis de mobilização são às vezes fracos, não porque não há consciência mas porque, frequentemente, falta a informação. E, ao mesmo tempo, não há estruturas que acompanhem essas entidades no seu processo de construção da ação coletiva. Cada vez que temos esses processos com ciclos mais violentos, vamos ter também desafios de maior reordenamento do território, acabando estes por ser a oportunidade de trazer essas experiências para a proteção dessas comunidades, como, por exemplo, a experiência que estamos a ter no sul, em Quinara, de legalização de terras comunitárias camponesas. O que permite não só salvaguardar o património partilhado, mas também trabalhar no próprio zoneamento agroflorestal e agrícola, permitindo que os níveis de tensão e de conflito com a migração das comunidades ficasse mais baixo.
2 Federação camponesa da região de Oio.
Atualmente, falando de resistências e de mobilizações, qual é o trabalho da Tiniguena em relação à intervenção ligada às alterações climáticas?
Estamos com três projetos essenciais. Um dos projetos chamamos “Mulheres construindo espaços cívicos de participação” que tem incidência no norte, no leste e no sul e permite olhar sobretudo para as mulheres agricultoras familiares, como criam mecanismos de mitigação e ao mesmo tempo de resposta a crises climáticas, sobretudo nas zonas de produção de produtos estratégicos, tanto para a sua economia familiar como para o seu sistema cultural. Isto também porque a conservação dessas variedades, por exemplo, de sementes, está intimamente ligada ao ciclo de transição de classe de idades. Mas também estamos a compreender como é que se pode trabalhar na modernização dos processos agrícolas, não com grande mecanização, mas com a criação de tecnologias adaptadas, através de sistemas mais motorizados e também de tecnologias que permitam, por exemplo, reduzir a exposição da mulher a tudo o que são os elementos de risco: o fumo, o fogo… E, a partir daí, introduzir essas mulheres dentro de uma cadeia de serviços e de economia financeira, que têm a ver com sistemas de crédito e de poupança, por exemplo, toda a tradição existente daquilo que se chamava sistemas da abota3 e colocarmos no programa de abastecimento de alimentos as cantinas escolares através do programa nacional de educação para a segurança alimentar.
Por outro lado, temos um outro projeto que é importante, tem a ver com feminismo e agroecologia, como trazer essa abordagem a partir dessas zonas de intervenção, para a construção de uma agenda comunitária de influência de políticas públicas, de práticas, mas também de representação dessas mulheres dentro da estrutura de decisão tradicional e dentro das estruturas formais do Estado.
E, por último, temos o que nós chamamos de “Mulheres Rurais” que trabalham não só entre essas dinâmicas mas trazem experiências de cada região que partilham ao nível das comunidades étnicas, ao nível de cada província. Essas experiências podem permitir construir uma agenda nacional, saindo da “agenda de género” onde só se fala da representação das mulheres da classe média alta, que têm altos níveis de escolaridade e que estão dentro do sistema formal, mas sim trazendo as mulheres que estão desprotegidas, que estão nas zonas rurais, são garantes da economia, e asseguram processos de conservação de patrimónios genéticos fundamentais. As suas práticas, os seus comportamentos, os seus pensamentos e as suas aprendizagens devem estar através das suas vozes, também, dentro das políticas públicas.
3 A abota é um sistema de poupança solidária em que cada pessoa contribui com um valor monetário igual e em que uma delas, rotativamente, pode usar o conjunto do dinheiro. É também conhecido como tontina.