Desconstruindo a “transição energética”
do “capitalismo verde”
CIDAC e Mariana Riquito; ilustrações: So
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A transição energética refere-se à passagem de uma matriz energética de origem fóssil, como o petróleo, o gás natural e o carvão, para uma matriz baseada em fontes “renováveis”, como a eólica, solar e hídrica, ou os sistemas elétricos de armazenamento de energia. Este processo, que implica a adoção de novas tecnologias, infraestruturas e inovações baixas em carbono em todos os setores produtivos, é também conhecido por “descarbonização” ou “neutralidade carbónica”.
Atualmente propagada como solução unívoca para mitigar os impactos climáticos e ambientais decorrentes do consumo massivo de combustíveis fósseis, a dita “transição energética” não passa, na verdade, de uma ferramenta discursiva do capitalismo fóssil, que dela se serve para se reproduzir e expandir. Como veremos, esta suposta transição acaba por reproduzir e perpetuar as narrativas dominantes sobre a nossa compreensão do mundo assim como as estruturas socioeconómicas hegemónicas. Não podemos, pois, falar de uma “transição”, mas sim de uma “expansão energética”, que tem permitido ao capitalismo fóssil reinventar-se, pintando-se de verde. Como escreveu Godofredo Pereira, citando Sérgio Godinho, a suposta transição energética é, para os governos e as empresas, “o elixir da eterna juventude, esse que quer que tudo mude, para que tudo fique igual”.
A “transição energética” não prevê uma redução nos níveis de consumo e produção energéticos
Esta suposta transição não questiona os níveis de consumo energético atuais nem procura romper com o crescimento contínuo na oferta energética. As estatísticas sugerem que não estamos a assistir a uma substituição dos combustíveis fósseis, mas sim a um aumento da quantidade total de energia que é produzida. Falar de “transição” é, neste contexto, desonesto, já que, e utilizando as palavras dos investigadores Richard York e Shannon E. Bell, “não se tem verificado uma mudança real de uma fonte [de energia] para outra”. Nesse sentido, o paradigma atual assemelha-se mais a uma “adição de energias que a uma transição energética”.
A “transição energética” mantém a dependência de energias fósseis
As estatísticas mostram-nos que o consumo de combustíveis fósseis tem aumentado sistematicamente: em 2022, a procura mundial de energia aumentou 1% e, apesar de um aumento recorde das “renováveis” nesse mesmo período, o domínio dos combustíveis fósseis não se alterou, garantindo 82% dos fornecimentos1. Embora as energias renováveis registem um crescimento regular, estas não têm ultrapassado o lugar de nicho de mercado, e a previsão de futuros investimentos em combustíveis fósseis mostra que a situação não tende a alterar-se.
A “transição energética” representa uma oportunidade de acumulação de capital
Neste quadro, em que as renováveis são acrescentadas ao mix energético, mas não substituem os fósseis, a mitigação climática e a proteção ambiental, historicamente entendidas como ameaças, parecem constituir agora uma oportunidade para o capitalismo contemporâneo: com a ajuda dos Estados, criam-se agora novos mercados, novos produtos, novas oportunidades de negócio “verdes”. No caso da extração de lítio no continente europeu — cuja principal motivação é a produção de baterias para carros elétricos2 —, verificamos que duas das indústrias mais poluidoras do mundo — a indústria mineira e a indústria automóvel — se servem da “transição energética” como oportunidade de acumular capital, ao mesmo tempo que “limpam” a sua imagem de grandes poluidores. De acordo com dados para 2019/2020 disponibilizados pela IEA, o impacto da crescente fatia do mercado automóvel mundial ocupada por viaturas elétricas (aproximadamente menos 40.000 barris de petróleo por dia) foi completamente anulado pelo consumo que representou o aumento de vendas dos SUV no mesmo período.
A crença de que é possível crescer infinitamente e ser “verde” ao mesmo tempo é perigosa, pois sugere que podemos continuar a desgastar o planeta sem sentirmos os efeitos desse esgotamento. Neste sentido, podemos argumentar que a dita transição energética é tão somente uma forma de camuflar – e reproduzir – o atual sistema económico, tingindo-o agora de “verde”.
A “transição energética” replica o modelo decisório top-down
Na mesma linha, também o modelo decisório se perpetua. As atuais políticas da suposta transição energética europeia, à semelhança de muitas outras políticas hegemónicas, têm sido decididas e implementadas segundo um modelo decisório top-down, que resulta frequentemente na estandardização das políticas públicas. A montante, as populações locais têm sido desapropriadas do processo decisório e, a jusante, são expropriadas dos grandes lucros destes negócios, tantas vezes prometidos. Sacrificadas em nome de uma “transição verde”, às populações locais sobra-lhes apenas um enorme passivo ambiental e social.
1 Dados do relatório Statistical Review of World Energy de 2023 do Energy Institute, que pode ser consultado aqui.
2 Em 2022, 80% do lítio extraído mundialmente foi usado para baterias, sendo mais de 60% para carros elétricos.
A “transição energética” reforça a narrativa dominante da separação entre Natureza e Cultura
O mito da transição energética não questiona — e, aliás, reforça — a narrativa dominante que estrutura a nossa compreensão do mundo. Essa narrativa dominante é baseada numa “Grande Divisão” entre Natureza e Cultura/Sociedade, segundo a qual os seres humanos são percecionados como exteriores e independentes da Natureza, e esta como um simples meio para atingir os fins da Cultura/Sociedade. Esta visão tem servido de substrato ideológico à destruição ecológica: só entendendo a Natureza como um recurso inferior e descartável se tem podido justificar a sua demolição. Enquanto a intrínseca ligação e dependência da nossa espécie do resto da Natureza for ignorada pelas políticas institucionais, estas continuarão a justificar a mercantilização, comodificação e destruição da Natureza para fins capitalistas.
A “transição energética” reduz a complexidade ecológica do planeta ao ‘clima’ e ao ‘carbono’
A suposta transição energética, ao dar prioridade quase exclusiva às alterações climáticas e, especificamente, às emissões de carbono, implicitamente concebe o ‘clima’ como uma esfera distinta da ecologia, por sua vez separada das questões sociopolíticas, económicas e culturais. Fazendo-o, reduz as complexidades ecológicas a números e estatísticas sobre emissões de carbono, que menosprezam a matriz complexa de interdependências que sustentam a vida na terra, e que não se podem resumir simplesmente ao clima, nem ao carbono. Ao apontar uma causa única e identificável — a redução das emissões de carbono —, a chamada transição energética facilita a conversão da natureza em unidades quantificáveis. Os esquemas de compensação de biodiversidade ou os créditos de carbono são bons exemplos que ilustram a forma como as políticas climáticas continuam a achatar a complexidade do planeta, reduzindo-o a agregados técnicos e esquemas matemáticos, baseados numa dissociação entre a materialidade ecológica e a atividade económica. Ora, na biosfera, onde tudo está interligado, cortar árvores e plantar novas, por exemplo, não é equivalente: uma floresta adulta demora anos a desenvolver-se e a frutificar as raízes que a tornam num sistema vivo altamente complexo. Acreditar que a plantação de novas árvores poderá (re)compensar a quebra das complexas teias que (inter)ligam as vastas redes de micélios de fungos às árvores em fruto aos animais que se alimentam deles às abelhas que espalham o seu pólen é ignorar que a terra é um organismo vivo, em permanente (auto)regulação.
A “transição energética” perpetua e reforça a governamentalidade tecnocientífica
Ao reduzir o planeta a um problema técnico a ser resolvido, reduzindo — ou deixando de emitir — emissões de carbono, esta visão favorece aquilo que na literatura se apelida de tecno-fix. Um tecno-fix refere-se à prática de utilizar a tecnologia para resolver um problema criado por intervenções tecnológicas anteriores. Podemos considerar esta abordagem tecnocêntrica uma ideologia, que, nos termos de Evgeny Morozov, “reduz fenómenos sociais complexos a problemas bem definidos e delimitados, com soluções definitivas e computáveis”. A ideologia segundo a qual é possível encontrar uma solução para todos os problemas apostando em novas e melhores tecnologias favorece as estruturas do sistema capitalista, pois estas soluções tecnológicas são mediadas pelas lógicas do mercado. A abordagem tecnocêntrica desta suposta transição reforça, assim, a governamentalidade tecnocientífica, negligenciando e menosprezando outros saberes e práticas mais holísticas.
A “transição energética reduz as possibilidades de transformação às questões energéticas
O enfoque na questão tecnocrática da origem energética obscurece a violência intrínseca do sistema que essa energia alimenta, limitando, pois, as possibilidades de pensar, imaginar e construir outros futuros que não o da reprodução capitalista. Limitando o debate sobre o que é — e o que implica — a “transição” a uma escolha entre possíveis fontes energéticas, limita-se igualmente a imaginação social sobre transformações mais profundas, que devem ir muito além da decisão sobre o tipo de energia consumida e produzida dentro do quadro do sistema capitalista. A narrativa hegemónica do mito da transição energética — ao ter estabelecido uma definição universal sobre o que significa “salvar o planeta” — encerra nela as possibilidades de diálogo sobre outras possíveis alternativas e futuros, que rompam com o capitalismo, o extrativismo, o industrialismo e o produtivismo.
Por todas estas razões, a suposta transição energética, longe de representar uma mudança transformativa, assemelha-se a uma reformulação do status quo, pois mantém intactas as estruturas e as mentalidades que levaram o planeta ao estado crítico em que se encontra. O mito da transição energética aparece, assim, como uma ferramenta comunicativa do capitalismo fóssil, que lhe permite fingir que muda de pele para poder continuar a existir. A transição que urge fazer vai muito além de uma mudança na origem das nossas fontes de energia: é necessária uma transformação na forma como nos relacionamos com o mundo, na forma como interagimos entre seres humanos e com outras espécies. Para tal, é imprescindível que as estruturas de consumo, produção e distribuição de energia respondam às necessidades das populações e não do capital; que as pessoas e infraestruturas estejam em simbiose com os territórios e não contra eles; e que a vida na terra seja defendida, respeitada e amada. É urgente, pois, que a narrativa verde dos governos e do capital seja combatida, desmistificada e trocada por uma outra: a do verde da natureza, de quem dela vive, e de quem dela cuida.