Dizer “não” à expansão energética da modernidade capitalista:

mobilizações e alternativas a partir das montanhas do Barroso

Mariana Riquito, doutoranda em Ciências Sociais no Instituto para Investigação em Ciências Sociais da Universidade de Amsterdão. Investigadora Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Ecofeminista. Acredita que outros mundos, mais justos, são possíveis.

Fotografias: Mariana Riquito, João Veloso e de autor/a desconhecido

Tempo médio de leitura: 38 minutos

Iluminada pela lua cheia, caminho por entre os carvalhais, que me guiam até ao Olhar do Guerreiro. Chegada ao miradouro altaneiro, sento-me numa pedra milenar e inspiro a beleza imponente das montanhas barrosãs. As ondulantes serras envolvem-se numa mística bruma, aclarada pontualmente pelos reflexos da lua farta. O céu noturno, habitualmente coberto por um ímpar espetáculo astral, torna-se, em noites como esta, súbdito do reino da lua. Ainda não estou totalmente confortável: embora este me seja um lugar familiar, a noite e a solidão ativam sentimentos de medo. Atento no espaço; procuro enraizar-me nele; acordo os meus sentidos; desperto o meu corpo animal. Ouço o vento que levemente acaricia os galhos das árvores e distingo as silhuetas sombrias da vegetação. Escuto o silêncio das pedras e imagino as vastas redes miceliais que me suportam. Sinto o corpo da terra — o vento, ora macio, ora transtornado; os pássaros, que retornam tímidos ao seu poiso; as árvores, que misteriosamente parecem comunicar. A montanha, casa para tantos seres, está viva.

Generosa como é, abre-me as suas portas, acolhendo-me na sua ecologia de existências. Do alemão Ökologie — junção dos termos gregos, oikos, que significa “casa”, com logos, “estudo” —, o termo “ecologia”, etimologicamente, designa a ‘terra’ como ‘casa’. Implicitamente, pois, convida-nos a estimar a Terra como estimamos a nossa casa. Recuperar a raiz do termo relembra-nos das nossas responsabilidades acrescidas: uma casa ama-se e cuida-se, pois nela nos abrigamos e nos aconchegamos.

Ora, a Terra, nosso lar comum, tem, nos últimos anos, emitido sinais preocupantes: chamas que consomem florestas ancestrais; secas que queimam culturas inteiras; ondas de calor que derretem até os territórios mais gelados; chuvas torrenciais que desalojam milhares de pessoas ou forçam outras tantas a migrar; ventos que matam seres vivos e arrasam infraestruturas. Estes gritos são o resultado de uma relação profundamente violenta e descuidada para com a nossa casa — proveniente de uma narrativa hegemónica que se baseia na suposta separação entre ‘Natureza’ e ‘Cultura’, e legitima o domínio de uma sobre a outra. Particularmente desde a Revolução Industrial que o “progresso” e o “desenvolvimento” das sociedades modernas se têm baseado na exploração, exaustão e extenuação massivas do planeta. Em prol do crescimento económico infinito e do desenvolvimento industrial-tecnológico, justificou-se o consumo de energias altamente poluidoras, a extração massiva de recursos, o desgaste intensivo dos solos, o uso de agrotóxicos, a destruição de ecossistemas inteiros, ou ainda a desumanização e sobre-exploração de corpos-territórios construídos como “inferiores”. Os atuais níveis de degradação socioecológica são, pois, consequência de uma narrativa sobre o mundo e de um sistema socioeconómico hegemónicos, que converteram a nossa casa-Terra num mero ‘recurso’ a ser explorado.

Longe de autoimplodir pelas suas contradições internas, o capitalismo tem vindo a reconfigurar-se, procurando, em permanência, a criação de novos mecanismos de acumulação de capital. O sistema capitalista — cuja perpetuação e expansão dependem da mercantilização de bens previamente não mercantilizados — tem vindo a demonstrar uma grande capacidade de adaptação: parece não haver limites para a superexploração e o hiperconsumo. O ‘clima’, a ‘biodiversidade’, a ‘energia renovável’, a ‘sustentabilidade’, o ‘carbono’ constituem-se agora como oportunidades lucrativas para os mercados. Muitas das políticas, instrumentos e iniciativas que procuram “dar resposta” aos desafios ecológicos e climáticos, ao invés de questionarem as estruturas hegemónicas, acabam por reproduzir o extrativismo, o produtivismo e o expansionismo económico, aumentando — e potencialmente acelerando — os níveis de degradação socioecológica que pretendem combater.

Resistindo à expansão capitalista “verde” desde as montanhas barrosãs

“Lítio? Nós nem nunca tínhamos ouvido falar do lítio!”. “Para mim, o lítio era só um elemento na tabela periódica”. O lítio, um ator-chave desta história, chegou de forma camuflada às aldeias de Covas do Barroso, Muro e Romainho. Contam-me que, em 2017, “a companhia [Savannah Resources] chegou aqui e disse que estava apenas a fazer algumas prospeções… Quando questionados para o que era, nem eles sabiam o que era! (…) E, claro…. Eles diziam que já tinham uma licença, uma autorização do governo”. Na altura, as autoridades locais e alguns particulares autorizaram a realização de trabalhos de prospeção mineira nos seus terrenos, pois “ninguém tinha noção do que eles queriam fazer, da dimensão do projeto”. Ademais, visto que já havia “um contrato de exploração mineira desde 2006 e não tinha havido praticamente exploração nenhuma, o que as pessoas pensaram foi do género: só querem fazer mais prospeções, ok…”. Foi apenas quando uma pessoa local emigrada leu num jornal internacional uma notícia sobre “a sua pequenina aldeia” que soaram os alertas: a notícia dizia que, ali, em Covas do Barroso, estaria localizada a maior mina de lítio a céu aberto da Europa.

“Alto lá!” — gritaram algumas locais.

Quiseram saber “o que realmente se estava a passar, o que é que a empresa realmente pretendia”. Começaram a reunir informações e a juntar as peças do puzzle: em 2006, o Estado português assinou um contrato de exploração de quartzo e feldspato denominado “Mina do Barroso” com a empresa Saibrais – Areias e Caulinos, para uma área de 120 hectares. É este o tal contrato de exploração que existia e era conhecido das pessoas, mas que nunca esteve realmente em funcionamento. Em 2008, a Saibrais alterou a sua denominação para Imerys Ceramics Portugal, tendo esta celebrado um novo Contrato de Prospeção e Pesquisa na zona envolvente à área de concessão. A 23 de junho de 2016, o Estado assina uma Adenda a este contrato, alargando a área de exploração para 548 hectares e adicionando o mineral lítio. Em 2017, estes direitos de concessão foram transmitidos à empresa Splistream Resources, uma joint venture entre a Savannah Resources e a Splistream Resources Investment, constituída especificamente para explorar o projeto de lítio da “Mina do Barroso”. Por outras palavras: um projeto de exploração de quartzo e feldspato em 120 hectares é transformado, através de uma adenda, num projeto de exploração de lítio em 548 hectares.

Reunir as peças deste complicado puzzle apenas foi possível graças à organização popular: em dezembro de 2018, criou-se a Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB). A UDCB tem sido, desde então, uma atriz-chave nesta luta. Na altura, graças à sua organização, as pessoas conseguiram não só travar as prospeções como também exigir uma compensação monetária à empresa pelos danos ambientais que causou durante a realização das sondagens de prospeção. Ainda assim, e de acordo com a empresa, foram efetuadas 135 perfurações entre 2017 e 2018. A empresa nunca “restaurou” as terras afetadas: ao caminharmos hoje pelos montes, podemos ainda ver e sentir essas feridas abertas no corpo da Terra — extensas áreas de solo terraplanadas e tubos de plástico que perfuram até às veias do rio.

Embora a contestação popular tenha crescido e as prospeções tenham sido travadas, a empresa continuou com a sua estratégia de penetração nas aldeias. Em 2018, as eleições para o Conselho Diretivo dos Baldios de Covas do Barroso foram particularmente participadas e agitadas: houve duas listas candidatas, sendo que uma delas era encabeçada por pessoas que trabalhavam para a empresa. Ganhou a lista concorrente. Mal tomou posse, a nova Direção organizou uma Assembleia de Compartes para consultar as populações: a larga maioria manifestou-se contra. Os Baldios de Covas do Barroso são, desde então, um outro ator-chave nesta luta. Dos quase 600 hectares previstos para o projeto mineiro, mais de metade estariam localizados em terrenos baldios. Os baldios são um tipo de propriedade de cariz especificamente comunitária, cuja administração, posse e gestão são da responsabilidade dos compartes1. Pela sua especificidade, os baldios não podem ser vendidos nem penhorados, pelo que, para realizar o projeto, a empresa teria de chegar a um acordo com a comunidade. Sem acordo, só a violência da expropriação estatal permitiria o início do projeto.

1Segundo o artigo n.º 7 da Lei dos Baldios: são compartes todas/os as/os cidadãs/os com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis, no respeito pelos usos e costumes reconhecidos pelas Comunidades Locais, podendo também ser atribuída pela Assembleia de Compartes a qualidade de compartes a cidadãs/os não residentes.

Em junho de 2020, a Savannah Resources apresenta um Estudo de Impacte Ambiental (EIA) para a Ampliação da Mina do Barroso, que prevê o alargamento da área de concessão até 593 hectares. Este foi inicialmente declarado “não conforme” pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Em dezembro de 2020, apesar dos documentos adicionais facultados pela empresa, a APA continuou a declarar o EIA “não conforme”. Perante isto, em janeiro de 2021, e à luz das leis que promovem o direito de acesso a documentos administrativos, a ONG galega, Fundação Montescola, faz um pedido formal à APA para ter acesso a todos os documentos relativos ao contrato da “Mina do Barroso”, incluindo o EIA entregue pela Savannah. A APA ignora este pedido. Em março de 2021, a Comissão Portuguesa de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) emitiu um parecer definitivo que determinava que a APA fornecesse os documentos em 10 dias. Ainda assim, a APA ignorou este pedido e não facultou os documentos. Por isso mesmo, em abril de 2021, a Fundação Montescola avançou com uma ação judicial contra o Ministério do Ambiente para aceder à documentação relativa ao contrato “Mina do Barroso”. Ao invés de fornecer os documentos exigidos, a APA disponibiliza o EIA para consulta pública. Entre 22 de abril e 16 de julho de 2021, o EIA relativo ao projeto de “Ampliação da Mina do Barroso” recebeu 168 participações, sendo que apenas 7 manifestaram a sua “concordância”.

Após um ano de espera, em julho de 2022, o projeto recebeu um parecer “não favorável” por parte da Comissão de Avaliação da APA. Contudo, ao abrigo do artigo 16.º do regime jurídico de Avaliação de Impacte Ambiental, foi dada à empresa mais uma oportunidade para reformular o seu projeto. A empresa anunciou, assim, que iria ter mais seis meses para “colaborar” com a APA no sentido de “otimizar” o projeto. Em março de 2023, a Savannah Resources entregou o EIA referente às Alterações ao Projeto de Ampliação da Mina do Barroso. Este EIA reformulado esteve em consulta pública entre 22 de março e 19 de abril de 2023. A APA contou uma participação recorde de 916 participações, sendo 894 provenientes de cidadãos — dos quais apenas 15 concordaram com o projeto.

Pese embora a forte contestação popular, a 31 de maio de 2023, a APA emitiu uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA) condicional favorável a este projeto. A empresa espera assim receber a Licença Ambiental em 2024.

O objetivo do projeto da Savannah Resources é a produção de concentrado de espodumena a partir da extração de rocha. O projeto contempla uma área total de 593 hectares, sendo que a exploração mineira ocuparia entre 348 e 476 hectares, divida por 4 cortas. O termo “cortas” remete diretamente para a violência aplicada às montanhas: as montanhas e as suas existências são cortadas, esventradas, arrasadas. Embora o projeto preveja um tempo de funcionamento das minas de apenas 12 anos, à escala do tempo geológico, os seus efeitos far-se-ão sentir duradouramente, deixando cicatrizes incontornáveis na paisagem. Essas cortas — algumas com 100 metros de profundidade — estariam situadas a escassos metros das aldeias circundantes: a aldeia de Romainho estaria localizada a apenas 200 metros da área de concessão e a 500 metros da área de escavação da maior corta; Covas do Barroso a apenas 750. Para além das 4 minas a céu aberto, o projeto contempla ainda a construção de uma unidade de processamento (lavaria), instalações de resíduos (escombreiras de rejeitos), estruturas de gestão de águas, novas estradas, o desvio de uma linha elétrica existente e a construção de uma nova.

O projeto mineiro prevê o desmonte das montanhas, através de explosões diárias. As toneladas de rocha explodidas

desmontadas

cortadas

dizimadas

arrasadas

seriam depois transportadas por pás carregadoras ou escavadoras giratórias para dumpers.
A mineralização bruta para a lavaria.                                      O “estéril” para a escombreira.

 

 

Na lavaria, a rocha extraída seria “processada”,
isto é,
triturada
e depois moída

a rocha
agora pó
seguiria para os “processos de separação”,
dependentes de litros e litros e litros e litros e litros e litros e litros e litros e litros de água
que separariam

a espodumena                                                                                                                                                                         da rocha hospedeira.

 

a labutar 24h/dia,

a lavaria processaria

1 tonelada de rocha
para extrair 6% de espodumena
o resto
o lixo
o estéril
segue para as escombreiras

Na escombreira, os “resíduos” “rejeitados” e “estéreis” seriam
em
pi
lha
dos.

cento
e
quarenta
metros
de
altura
de
rejeitos

a menos de 1 quilómetro do rio Covas

por ano
a taxa
de produção de rejeitados
chegaria a 1,5 milhão de toneladas

Poderíamos continuar a elencar muitos dos outros impactos ambientais, ecológicos, climatéricos, sociais e humanos negativos muito significativos — e até irreversíveis — deste projeto, identificados tanto pela APA como por especialistas independentes. Apesar disso, a APA aceitou-o.

 

“O lítio é um mineral que tem um papel central em toda a agenda da transição energética e descarbonização da economia (…). O recurso lítio revela-se muito importante para o cumprimento das metas da neutralidade carbónica (…). O lítio é um mineral metálico imprescindível para a vida moderna em sociedade, tal como reconhece a Comissão Europeia, na sua Raw Materials Iniciative”.

 

Voilà o “enquadramento” e “justificação” dados pelo Parecer da Comissão de Avaliação da APA para aprovar, ainda que condicionalmente, este projeto. A mercantilização, comodificação e consequente extração da Natureza; a despossessão e expropriação de terras agrárias; a erradicação de práticas culturais ancestrais são justificadas em nome de um bem superior e de uma necessidade absoluta: a descarbonização.

Com características e práticas únicas em termos agrícolas, humanos, culturais, sociais, geográficos e ambientais, o Barroso é a única região em Portugal — e uma das poucas na Europa — a ser classificada como Património Agrícola Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O parecer emitido pela Comissão de Avaliação da APA admite que este prestigiante selo é “incompatível” com o projeto mineiro da Savannah Resources.

Não é só esta empresa britânica que tem planos extrativistas para as montanhas barrosãs: há, no total, 8 contratos de exploração mineira assinados na região do Barroso, incluindo o projeto da portuguesa LusoRecursos, no concelho de Montalegre, que também recebeu uma DIA Condicional Favorável a 7 de setembro de 2023. Contudo, pela dimensão do projeto da Savannah, o epicentro desta corrida ao lítio português são, sem dúvida, as aldeias de Covas do Barroso, Muro e Romainho e são também elas o ponto nevrálgico da resistência à mineração dita “verde” e de oposição às atuais políticas de descarbonização.

Ao longo dos últimos seis anos, estas populações e as suas montanhas têm resistido firmemente, formando associações e coletivos; participando em assembleias municipais; organizando-se em assembleias de compartes; criando canais de comunicação e de partilha de informação; elaborando mapas e relatórios; organizando manifestações e protestos; participando em eventos académicos e culturais; escrevendo e falando para várias plataformas mediáticas e académicas; mobilizando centenas de pessoas para participar nas consultas públicas; agindo judicial e legalmente em todas as fases dos processos administrativos; organizando acampamentos e residências artísticas; levando a cabo ações de bloqueio e boicote a representantes estatais; bloqueando máquinas e impedindo a empresa de avançar no terreno.

As populações do Barroso sabem que esta luta não é (só) uma luta local, e sabem que não estão sozinhas. Desde o início têm procurado tecer redes com pessoas, territórios e lutas além-fronteiras, como é o caso da vizinha Galiza, da mais distante Sérvia, ou do Chile longínquo. Todos os verões, centenas de pessoas viajam até Covas do Barroso, vindas de todos os pontos do mundo, para o Acampamento em Defesa do Barroso. Esta primavera, todos os caminhos darão rumo ao Barroso uma vez mais: aqui, entre os dias 5 e 7 de abril de 2024, organizar-se-á o 9.º Encontro pela Justiça Climática.

O ‘Barroso’ viaja e multiplica-se, tornando-se já num símbolo da resistência e das tensões suscitadas pelas políticas atuais da dita “transição energética”. Aqui, desmascara-se a tripla falácia da narrativa hegemónica: “isto não representa nem uma ‘transição’, nem é ‘verde’, nem é ‘socialmente justa’”. Não é uma ‘transição’ porque as energias ditas renováveis dependem todas de combustíveis fósseis e da extração de recursos; não é ‘verde’ porque está a promover práticas ecologicamente destrutivas; e não é ‘justa’ porque ignora e sacrifica comunidades inteiras. As comunidades barrosãs, que se vêem ameaçadas diretamente por um mega-projeto extrativista, são um exemplo de lutas de base por justiça social, ambiental, climática e ecológica.

Mesmo perante toda a resistência das pessoas locais e das suas companheiras além-montes, a empresa, com a conivência do Estado, tem continuado a tentar penetrar neste território, por forma a obter a Licença Social para Operar (LSO). Obter a LSO significa, na prática, conseguir a aceitação das partes interessadas, nomeadamente de quem se opõe aos projetos, bem como do público em geral. Há uns anos, ofereceram um Bolo Rei às pessoas locais por ocasião do Natal. Como os locais não são tolos, não se compraram com bolos. A empresa passou então a um segundo nível: aproximou-se das pessoas mais vulneráveis economicamente, oferecendo-lhes apoios materiais, assim como das famílias mais influentes, ganhando, assim, legitimidade e acessos sociais na região. Começou a comprar terrenos a um preço bem acima da média do mercado e a espalhar as suas newsletters nas quais promete mundos e fundos e se apresenta como uma empresa próxima da comunidade.

Mais recentemente, com uma DIA em mãos, e ao entender que estas estratégias não desmobilizaram a resistência, a empresa e o Estado subiram de patamar: desde o mês de outubro, há uma patrulha da GNR destacada para vigiar Covas do Barroso diariamente, há máquinas a laborar praticamente todos os dias dentro da área de concessão mineira, e há uma empresa de segurança privada a vigiar o local dia e noite. Estando a Savannah obrigada a cumprir com certas condições impostas pela APA, contratou uma empresa de psicólogos sociais para efetuar mais um estudo de impacte social sobre o projeto — pese embora as vozes firmes de parte da comunidade local que gritam um contundente “não” desde o início. Para além de medir o impacte social, a empresa tem também de realizar mais sondagens de prospeção — muito embora se afirme que, aqui, há lítio suficiente para alimentar parte das necessidades europeias, a verdade é que, a este ponto, isso é (ainda) especulação. Para tal, a empresa tentou, no mês de novembro, entrar para uma parcela de terreno que, alegam as pessoas locais, não lhe pertence, e que se encontra, inclusive, em processo de litígio nos tribunais. Desde 16 de novembro de 2023 que os locais vigiam e protegem este terreno, impedindo, todos os dias, a máquina de laborar e abrir novas feridas no corpo da Terra. À resistência legal, soma-se agora a ação direta, apoiada na legitimidade popular.

Construindo alternativas sociológicas a partir das montanhas barrosãs

Nos últimos anos, as montanhas do Barroso têm sido palco de experimentações: o governo e a empresa ensaiam megaprojetos capitalistas e extrativistas, ao mesmo tempo que as populações ensaiam práticas que escapam e resistem a estas lógicas hegemónicas. Aqui, onde a serra encontra o rio, subsistem muitas práticas que ainda não foram devoradas pela máquina totalizante da modernidade capitalista. Aqui, onde o céu encontra a terra, vislumbram-se já possibilidades de mundos mais lentos, colaborativos, comunitários e cuidadosos. Aqui, onde a nascente encontra o rio, existem narrativas e práticas socioecológicas outras que as da expansão energética.

 

A terra, a água e o pão: apontamentos sobre a gestão dos comuns no Barroso

Para chegar a Covas do Barroso, é preciso atravessar estradas sinuosas que parecem engolir-nos a cada nova curva. Até há poucas décadas, estas não existiam; só as serras banhavam a vista. Protegida a Norte pela Serra da Sombra e a Sul pela Serra do Pinheiro, Covas recebe este nome por estar localizada no sopé das montanhas, parecendo, vista de cima, uma cova. Rodeada pelas serras, é delas que os e as habitantes de Covas do Barroso historicamente retiram o seu sustento. Atualmente, cerca de 2.000 hectares destas serras são baldios.

As terras comunitárias são utilizadas principalmente para projetos florestais; para o cultivo agrícola ou o pastoreio; para a recolha de madeira ou de pedras para a construção de casas; a caça; a recolha de lenha para aquecer as casas; a recolha de mato para fertilizar a terra ou para fazer a cama dos animais; ou ainda para a produção de mel. Os baldios representam uma forma ancestral de gestão e uso comunitário da terra que tem, historicamente, garantido a autonomia dos povos serranos. Este sistema tem promove uma gestão sustentável, comunitária e democrática do uso da terra. Nas palavras do sociólogo Pedro Hespanha, os baldios são um “repositório da experiência de cooperação acumulada ao longo de gerações, (…) [uma] escola de aprendizagem de cooperação e de autogestão democrática”. Isto porque as decisões sobre os usos dos baldios são tomadas na Assembleia de Compartes, um espaço de decisão que promove uma cidadania ativa, engajada, direta, onde é dado espaço a quem conhece e vive da terra para sobre ela decidir.

Mas não só a terra é gerida de forma comunitária: no Barroso, também a água está nas mãos da comunidade. O sistema de regadio tradicional constitui uma outra forma de organização comunitária ancestral, que reflete uma gestão sustentável e democrática dos recursos comuns das montanhas. Durante os meses invernais, a abundância de água dispensa partilhas: qualquer um/a pode ‘tornar’ a água ao ritmo desejado. Durante os meses estivais, mais secos, a água tem de ser partilhada. A água de verão é repartida equitativamente entre todos os terrenos, segundo convenções seculares, em que o tempo é ritmado pelo sol e as suas sombras. A abertura das comportas que encaminham a água para os terrenos depende de relógios do sol, cujas marcações assentam em pedras milenares. Ao ritmo do Sol Quente ou da Última Estrela Pintada, abrem-se as comportas pelas quais flui a água que mantém vivas as terras, as hortas e os lameiros. Em Covas do Barroso, os direitos consuetudinários da “água do povo” são transmitidos oralmente, de geração em geração, desde há pelo menos três séculos. Este sistema, simbolicamente apelidado “torna da água”, mostra bem como a água é considerada um bem comum, cuja gestão comunitária garante o seu uso parcimonioso e responsável.

Em Covas do Barroso, Muro e Romainho, também o pão é um símbolo do comunitarismo destas terras, como escrevia outrora Miguel Torga, numa das suas passagens por estas aldeias. Embora a prática de cozer o pão no forno comunitário tenha diminuído drasticamente com a emigração massiva e o envelhecimento da população, este ainda é aceso regularmente por algumas mulheres que vão alimentando a sua chama. O forno comunitário é simultaneamente porto-abrigo, mantendo as suas portas abertas para acolher quem por bem vier; e porto-abastecedor, mantendo as suas cosedeiras intactas para quem as quiser acender. O pão, cosido lentamente nas pedras do forno comunitário, é por todos distribuído, durante as festividades das aldeias, ou ainda durante os casamentos e funerais.

O comunitarismo foi precisamente reconhecido pela FAO como “um dos valores e costumes mais típicos do Barroso” e uma “forma de organização rural”. Todas estas práticas, valores e saberes estão, de facto, enraizados no território barrosão, desenhando, assim, um retrato vivo da resiliente ancestralidade destas comunidades serranas. Este sistema de práticas e crenças comunitárias parece escapar à gramática hegemónica sobre o território, oferecendo-nos, assim, práticas e narrativas alternativas às do modelo decisório centralizado, que favorece os Estados e o capital, que replica o individualismo, a competição e a concentração da riqueza. Não é de estranhar, pois, que os baldios e as águas sejam os bens mais cobiçados pelo projeto de mineração da Savannah.

 

Tecendo redes de cuidados entre diferentes seres

Nas aldeias transmontanas do Barroso, a agricultura de subsistência cria uma proximidade muito grande entre as pessoas, os animais, as plantas, os micróbios, as águas, as terras. Essa proximidade favorece a intimidade entre as pessoas e os seus ecossistemas, permitindo uma harmonia entre as práticas sociais e económicas e as suas realidades ambientais e ecológicas. Respeitando os ritmos da Terra, as populações barrosãs têm cuidado e zelado pelo seu território, moldando-se e adaptando-se a ele, numa dança que não atropela os ciclos de vida. Foram estas práticas de cuidado entre seres humanos e o seu meio que levaram a FAO a reconhecer o “importante número de áreas ambientais muito significativas e relativamente intactas encontradas nesta região” que albergam “numerosas espécies vegetais e animais que são extremamente importantes para a conservação da natureza”.

Conclusões

Ao lusco-fusco, o azul do céu tinge-se de rosa e cobre os verdes campos. A mistura onírica de cores é pontilhada pelo voo dos pássaros, que, em bando, retornam aos seus ninhos, oferecendo um adeus suave ao dia. Enquanto o sol se despede dos montes, já a lua sorri, alta. Olho-a. A luz da lua diurna — essa luz que não encandeia, que tranquiliza e instiga — dará em breve lugar à noite. Voltarei ao Olhar do Guerreiro. Lembrar-me-ei que o meu corpo se sente confortável na presença das sombras. Afinal, estou em casa.

O medo
transforma-se em amor

É este amor pela terra que urge resgatar nos debates e práticas contemporâneas sobre justiça socioecológica. Quando começamos a sentir a profunda interligação entre comunidades, espécies e ecossistemas, passamos a olhar de uma forma diferente para os desafios socioecológicos. Quando sentimos as montanhas, passamos a sentir que a sua destruição poderá afetar o ciclo da água a milhares de quilómetros de distância, poderá destruir os longos quilómetros de redes de micélios, poderá quebrar as redes alimentares de vários animais. Quando sentimos as montanhas, sentimos que os danos que infligimos à Terra são danos que infligimos à nossa casa e, consequentemente, a nós próprias. Quando sentimos as montanhas, amamo-las e defendemo-las, jamais as esventraremos em nome de uma suposta “descarbonização”. Recuperar a gramática e a prática do cuidado e do amor, reconhecendo que é assim que a vida na Terra é mantida, é, por isso, um ato radical na busca por alternativas socioecológicas, face a um mundo emaranhado de catástrofes e medos.

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