O capitalismo contra o clima
João Camargo (texto e ilustrações), ativista do Climáximo e investigador em alterações climáticas
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Não é raro falarmos de capitalismo “fóssil”, mas o objetivo desta formulação é apenas tornar clara a origem da crise climática: a queima de combustíveis fósseis. Poderia haver quem argumentasse que, se há um capitalismo fóssil, também haveria “verde”. Essa é, no entanto, uma impossibilidade. O capitalismo não pode não usar combustíveis fósseis. Não significa que não possa também usar outras formas de energia. A ligação entre capitalismo e combustíveis fósseis é absoluta, como é portanto a ligação entre o capitalismo e a crise climática. É preciso ser claro: o capitalismo criou a crise climática. É preciso ser mais claro ainda do que isto: o capitalismo criou e sabia há muito que criou a crise climática. Além disso, é preciso dizer que o capitalismo é e será incapaz de travar a crise climática.
Tendemos a assumir que o capitalismo é o estado natural das coisas porque somos permanentemente bombardeados na guerra cultural que fez das nossas cabeças e da nossa imaginação um campo de batalha sobre o que é ou não possível. Desde a cultura dominante no capitalismo às notícias, às redes sociais, tudo nos diz que o mundo é isto e não pode ser isto. No entanto, sabemos que somos uma espécie que tem entre 200 e 300 mil anos de existência. Também sabemos que só nos últimos 12.000 anos surgiram as condições para o aparecimento de agricultura, de grandes aglomerados populacionais e da “civilização” como a conhecemos. Foi o clima do Holoceno que nos permitiu essa evolução. O capitalismo como forma de produção e organização social não tem muito mais de 200 anos, apesar das suas alianças com outras formas antigas de organização repressiva, como o patriarcado e o colonialismo. A lengalenga de que a maneira como alguns grupos se comportam em capitalismo é “natureza humana” não passa disso mesmo – uma lengalenga. Como todas as lengalengas, tem aderentes. O que eles querem conformar é a ideia de que não há alternativa a este sistema, e que portanto devemos simplesmente aceitar que é assim. Apesar de termos vivido enquanto espécie neste planeta durante pelo menos 198.800 anos sem capitalismo, e apesar de termos agricultura, aglomerados populacionais e civilização há pelo menos 11.800 sem capitalismo. Apesar disto, dizem-nos que não há alternativa ao capitalismo. Sim, é ridículo e não passa qualquer crivo histórico ou científico.
Em 2006, Sir Nicholas Stern escreveu no seu livro “The Economics of Climate Change”, que as alterações climáticas eram a maior falha de mercado que o mundo já viu. Stern reconhecia que havia um grave problema “o maior que o mundo já viu”, mas chamava-lhe uma “falha”. Não é verdade. O capitalismo necessitou e necessita ignorar os efeitos das suas atividades para funcionar. Se o capitalismo tivesse de pagar a degradação ambiental que as suas atividades produzem, teria de abdicar dos seus lucros e portanto deixaria de funcionar. O capitalismo tem de desprezar o facto básico de os recursos humanos serem não só escassos como finitos, razão pela qual encoraja permanentemente (e além da cultura, a publicidade tem aqui um papel essencial) produtores e consumidores a gastar os recursos de acordo com o ritmo das “condições de mercado”. Mercado é uma palavra-chave em capitalismo. De acordo com a Investopedia, um “mercado é um lugar onde as partes se juntam para facilitar a troca de bens e serviços, tendo compradores e vendedores, podendo ser físico ou virtual”. Além disso, algumas características chave do mercado incluem a “disponibilidade de um local, compradores e vendedores e uma mercadoria que possa ser comprada e vendida”. Este mercado, em particular os “mercados internacionais”, não são algo que nós consigamos ver ou participar. Talvez sejam mais simples explicar que mercados são pessoas ricas que decidem o que comprar e vender, porque essa definição descreve a quase totalidade dos mercados nacionais e internacionais. Não é uma entidade abstrata: tem nomes, moradas e interesses representados em bolsa.
O capitalismo necessita que tudo seja mercadoria e, portanto, transacionável – recursos, naturais, plantas, animais, o clima, as emissões – mesmo que o seu valor seja incalculável, como a capacidade que as plantas têm para fornecer oxigénio. Algo que não possa ser transacionável entre os ricos (“mercados”) tende a ser ignorado no capitalismo porque não tem valor de troca e, portanto, não poderá render imediatamente a alguém. Isso pode ser algo como a dignidade ou direitos humanos, como pode ser a habitabilidade de um território, o colapso de um ecossistema terrestre ou a vida de uma comunidade. A atribuição de um valor monetário a qualquer um destes é um processo de alienação, até porque um valor monetário, uma “moeda”, seja ela qual for, depende apenas de uma crença e não tem qualquer correspondente material.
No livro “Capital Fóssil” de Andreas Malm, ele explica-nos a origem e fusão completa entre o capitalismo e os combustíveis fósseis, a partir do início da revolução industrial. O abandono da utilização da água como fonte de energia, trocada pelo carvão e o vapor não foram apenas um “avanço tecnológico”, como tantas vezes nos explicam em livros de história: foram uma maneira de aumentar o controlo sobre a maneira como se produzia e, principalmente, sobre quem produzia. O carvão e, mais tarde, o petróleo e o gás, ganharam sobre a água e o sol como fontes de energia porque permitiram aumentar o controlo dos patrões sobre quem trabalhava, aumentando simultaneamente o poder da burguesia industrial sobre o Estado.
Permitiram construir fábricas longe da água e ignorar as horas do dia, colocando quem trabalha – crianças, mulheres, homens, idosos – a trabalhar todas as horas do dia, 14 a 16 horas por dia, seis dias por semana. A concentração da energia também permitiu arruinar pequenos produtores que não tinham capacidade de produzir à mesma velocidade e com a mesma quantidade das fábricas, que se desenvolviam à volta dos motores a carvão. Além disso, o carvão (como o petróleo e o gás) são matérias cuja extração é de muito maior dificuldade, tendendo a criar grandes monopólios. Os combustíveis fósseis fazem parte integral das relações de propriedade burguesas: foi o carvão que criou a grande fábrica e o proletariado industrial. A “transição” para o carvão foi uma decisão deliberada e extremamente útil para consolidar o capitalismo como modo de produção, tal como as inúmeras decisões tecnológicas que se sucederam desde o final do séc. XVIII. As decisões tecnológicas foram sempre orientadas por relações de poder e não de racionalidade energética.
Além das turbinas a carvão e petróleo, em 1804 foi criada a primeira locomotiva a carvão em Inglaterra. As locomotivas a vapor e a petróleo continuaram a evoluir e a ser adaptadas a vários usos, desde os comboios às fábricas e aos barcos, permitindo a explosão de produção e distribuição de produtos, que levou ao êxodo rural das populações do campo para as cidades e as indústrias, que continuou durante os séculos seguintes. Os caminhos de ferro foram-se expandindo, como o foi também a navegação marítima alimentada agora não apenas a ventos e marés, mas também a carvão e petróleo – isto tornou o mundo mais pequeno, aumentou o comércio, a extração de matérias-primas em todos os continentes e o modelo de desenvolvimento industrial capitalista.
Os combustíveis fósseis têm outra vantagem sobre as energias eólica, solar e da água – são uma pilha, têm energia solar armazenada, pois são o resultado da degradação de seres vivos há milhões de anos. Como estavam no subsolo, estavam fora do sistema biológico de circulação. Podem ser transportados e armazenados para serem consumidos a qualquer altura. E a sua queima liberta na atmosfera o dióxido de carbono que tinha sido fixado pelos seres vivos enquanto estavam vivos.
Em 1864 Nikolaus Otto inventou o motor a 4 tempos, que deu origem aos motores a gasolina e a diesel. Simultaneamente, o motor elétrico também era desenvolvido, mas a sua menor rentabilidade e predisposição a controlo monopolista colocou-o sempre em segundo plano. O primeiro carro a combustíveis fósseis foi inventado no séc. XIX, tal como o primeiro carro elétrico – o segundo praticamente desapareceu durante mais de 100 anos. O Ford-T foi o primeiro automóvel produzido em massa numa fábrica, e o seu objetivo era ser barato e acessível a milhões. Entre 1908 e 1927 foram produzidos 15 milhões de Ford-Ts. Desde o início do século passado cerca de 3 mil milhões de carros foram produzidos, tornando-se um dos principais meios de transporte do planeta, e criando inúmeros monopólios simultâneos – da produção dos automóveis, das peças, do combustível, da construção das estradas, etc.. Nos anos 30 do século passado foi inventada a turbina a jato, que lançaria o transporte aéreo, também a combustíveis fósseis, e que se foi desenvolvendo para ocupar o espaço das viagens cada vez mais curtas, substituindo barcos e comboios. A eletrificação das sociedades e economias ocidentais exigiu a criação de grandes centrais elétricas, cujos proprietários tinham forte poder sobre a sociedade (seja pelo preço da energia, seja pela quantidade e regularidade de abastecimento). Eletricidade, fábricas, portos, aeroportos e estradas, todos dependentes de combustíveis fósseis, são expressão mais clara de como o capitalismo é e só pode ser capitalismo fóssil.
O capitalismo não pretende produzir bens e serviços, mas sim capital e acumulação. Se para isso tiver de destruir o planeta, fá-lo-á sem problemas, a não ser que seja travado. Mas também é flexível e, por isso, quando os capitalistas deixam de conseguir acumular riqueza a ritmos crescentes, ou quando vêm uma oportunidade, “inovam” e tornam-se “empreendedores”. Por isso hoje se fala tanto de coisas intangíveis como criptomoedas ou inteligência artificial. Mas isto também acontece com as alterações climáticas. Mesmo boas ideias de solução são corrompidas pela lógica de expansão, conquista e monopólio.
O capitalismo não tem ferramentas para resolver as alterações climáticas. Isso não significa que não procure atalhos e soluções de continuidade, criando ideias como “desenvolvimento sustentável” ou “capitalismo verde”, noções que tentam conciliar o inconciliável, forçadas a entrar numa mesma expressão e que significam um vazio total. Crescer significa: “aumentar naturalmente em tamanho pela adição de material através de assimilação ou acréscimo” e desenvolver-se significa “expandir ou realizar os potenciais de; trazer gradualmente a um estado mais completo, maior ou melhor”.
Quando algo cresce, fica maior. Quando algo se desenvolve, torna-se diferente. O ecossistema terrestre desenvolve-se (evolui) mas não cresce além de certos limites. A economia, como subsistema do ecossistema terrestre, deve finalmente parar de crescer, mas pode continuar a desenvolver-se. O capitalismo não aceita esta premissa porque ela implica travar a acumulação de capital.
A gigante confusão entre crescimento e desenvolvimento é o terreno fértil em que o capitalismo quer ser eterno. Infelizmente esta confusão domina e é por isso que se alimenta a ideia errada de que, para haver empregos, é preciso destruir o ambiente e o clima. O capitalismo diz-nos que abdicar dos combustíveis fósseis é escolher viver nas cavernas, quando a realidade é que continuar a usar combustíveis fósseis significará, na melhor das hipóteses, viver nas cavernas. O mundo já está fundamentalmente diferente daquele em que o capitalismo se desenvolveu e prosperou. Agora só degradando cada vez mais e muitas vezes de forma irreversível o trabalho, o ambiente e o clima poderá continuar a manter as suas taxas de retorno, os seus lucros, a sua extração de mais-valia.
A austeridade é um sintoma disso mesmo, como é a crise do custo de vida, que hoje já tem como fonte direta o preço dos combustíveis fósseis e a crescente escassez material ligada à crise climática. Enquanto houve capitalismo, a crise climática continuará sempre a exprimir-se como uma crise de custo de vida, em que nós pagaremos os prejuízos e os lucros das elites capitalistas, que nunca pararão. O capitalismo considera mesmo que a escassez de estabilidade climática pode ser uma oportunidade de negócio a ser aproveitado por aqueles que possuem capital e tecnologia para aproveitar o momento. Como o capitalismo nunca aceita perder, além das “oportunidades” no combate às alterações climáticas também vê “oportunidades” no caos climático. O frenesim das seguradoras e das resseguradoras é total, e a financeirização uma necessidade. Assim, o capitalismo procura rentabilizar já não só futuros lucros como lucrar com as catástrofes. Nos últimos anos houve uma explosão financeira para transferir riscos climáticos através de derivativos climatéricos e títulos de catástrofe (cat bonds).
“Descarbonizar” a economia, por outro lado, é um jogo de palavras proclamado por vários governos e empresas, sempre que não se pára a utilização de combustíveis fósseis, que não se encerram indústrias com elevadas emissões, sempre que não se transformam os transportes e a produção agro-pecuária e florestal. Renováveis não tiram dióxido de carbono da atmosfera e os novos modelos de renováveis estão a mimetizar os monopólios fósseis e são mesmo algumas destas empresas que já dominam o novo sector: com grandes centrais, grandes redes de distribuição e a manutenção do poder nas mãos dos “mercados”.
Em muitos locais do mundo as alternativas já existem e estão a ser praticadas: a permacultura, a democracia energética, a revolução alimentar, o combate às energias fósseis em funcionamento, os transportes alternativos. No entanto, a escala a que estas alternativas estão a ser praticadas é residual e estas são mantidas na marginalidade pelas leis que defendem o status quo, o poder como ele sempre foi e, acima de tudo, a propriedade.
Os capitalismo não poderá jamais abdicar de lucro, e há mais reservas de petróleo e gás no subsolo do que aquelas que queimámos até hoje – e é por isso que até hoje as emissões nunca pararam de aumentar. Eles não têm alternativa a fazer todo o lucro que possam e por isso têm de ser derrubados para poder continuar a haver Humanidade.