O fim das utopias? Inovação, tecnologia e desenvolvimento
Ana Luísa Silva, Investigadora em Estudos de Desenvolvimento e co-fundadora da Oficina Global
Tempo aproximado de leitura: 10 minutos
“Que interessante, inovação! Mas… o que queres dizer exatamente?”
Não sei quantas vezes me pediram para explicar o que queria dizer com ‘inovação’ enquanto estava a trabalhar na minha tese de doutoramento1. O que não deixa de ser curioso, para um conceito tão omnipresente – se parar para pensar, quantas vezes se deparou com ele esta semana? No discurso de um ministro ou nas declarações de um empresário no telejornal, talvez numa entrevista a um porta-voz de uma associação local…
Não é por acaso que a inovação ficou com a fama de chavão. Num sentido mais genérico, inovar é fazer algo novo ou fazer algo que já existe de uma forma diferente. Esta definição genérica não diz nada sobre ‘melhor’ – fica-se pelo ‘novo’ e ‘diferente’. No entanto, existem poucas ideias com uma componente normativa tão forte no discurso público: inovar é bom, inovar é preciso. Quando se fala de inovação é quase sempre para falar de coisas boas: uma nova descoberta na biomedicina que permitirá curar mais doenças; um novo produto que foi um sucesso para uma determinada empresa; uma nova tecnologia que revolucionou a experiência de alunos e professores na sala de aula; ou uma política pública que vai seguramente impulsionar a inovação tão necessária para a nossa sociedade.
A inovação sofre do que o sociólogo Everett Rogers, ainda nos anos 80 do século passado, chamou ‘viés pró-inovação’ (pro-innovation bias). O discurso público sobre inovação (que é invariavelmente utilizada como sinónimo de tecnologia, mas já lá vamos) é quase tão dogmático com o do crescimento económico. Desde os anos 60 do século passado que o termo inovação tem sido uma das palavras-chave usadas pelos governos um pouco por todo o mundo no desenho das suas estratégias industriais, de crescimento económico e desenvolvimento do sector privado: faz parte da tríade ‘Ciência, Tecnologia e Inovação’. E não é por acaso.
1 Silva, Ana Luísa (2023). “Weathering the storm? : non-governmental organisations, innovation, and change in international development cooperation”. Tese de Doutoramento. Universidade de Lisboa. Instituto Superior de Economia e Gestão.
(Muito) Breve história do conceito de ‘inovação’
2 Vista como motor do desenvolvimento económico, a inovação é o resultado mais desejável das políticas de ciência e tecnologia que os governos têm seguido desde o período pós-Segunda Guerra Mundial. Esta é a perspetiva que domina as instituições que se ocupam do tema e, assim, ajuda a moldar as políticas públicas de inovação, ciência e tecnologia. Desde a década de 1990, documentos internacionais e regionais têm também influenciado as políticas e estratégias nacionais de inovação, como o influente Manual de Oslo, publicado pela publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) pela primeira vez em 1992.
3 Fagerberg, J. (2003) ‘Schumpeter and the revival of evolutionary economics: An appraisal of the literature’, Journal of Evolutionary Economics, 13(2), pp. 125–159.
4 Godin, Benoit (2015). Innovation: A Conceptual History of an Anonymous Concept. Working Paper 21. Montreal, Quebec: Canada: INRS, p. 36.
O significado atual e mais corrente de inovação, intrinsecamente ligado à evolução do nosso atual sistema económico, consolida-se a partir do pós-Segunda Guerra Mundial e deve muito ao trabalho de Joseph A. Schumpeter, economista austríaco que viveu entre 1883 e 1950. Na tradição schumpeteriana, inovar é pôr uma ideia em prática, i.e., trazer uma invenção para o mercado. É através deste processo que o empreendedor, a figura por excelência do processo de inovação – aquele que é capaz de assumir o risco de pôr em prática algo diferente da norma, romper com o statu quo e aceitar a incerteza do resultado – consegue ganhar vantagem competitiva e (se tudo correr bem) acrescentar valor ao seu produto. Neste cenário, a inovação é muitas vezes sinónimo de tecnologia – e é este o motor do capitalismo, a famosa ‘destruição criativa’ em que algo diferente (em princípio, melhor – ou seja, mais eficiente do ponto de vista dos recursos) substitui o que se tornou obsoleta. Nos ‘estudos de inovação’, que continuam a encontrar em Schumpeter a sua maior inspiração, a inovação é, por isso, central para o sistema capitalista: é fonte de crescimento económico2. Aliás, Jan Fagerberg, importante investigador na área, lembra-nos que inicialmente Schumpeter tinha chamado à inovação simplesmente ‘desenvolvimento’3.
Não foi sempre assim – há sempre outras histórias que podem ser contadas sobre as ideias, e a inovação não é exceção4. Palavra de origem grega, significa originalmente ‘introdução de mudança na ordem estabelecida’. Quando entrou no discurso ocidental, através da religião, a partir do século XV, era vista como um comportamento desviante, algo que deveria ser proibido e punido. Para os bispos ingleses durante a Reforma Protestante em Inglaterra, os reformadores são uns inovadores, isto é, uns hereges.
It is on us. Créditos: Joana Mundana, ArtistsForClimate.org
Nos tempos pré-modernos, a passagem da esfera religiosa passa rapidamente para a esfera política, onde o termo inovação é usado (esporadicamente), de forma pejorativa, para descrever episódios como a Revolução Francesa: desta vez, são os revolucionários que são catalogados como inovadores. Por fim, chegamos à esfera social, no século XIX, onde o socialismo é criticado como uma perigosa inovação social que pretende destruir instituições como a propriedade privada. É nesta esfera, onde nesta altura encontramos tanto ideias revolucionárias como reformistas, que o conceito começa a ganhar contornos positivos. Na verdade, o primeiro teórico a abordar a inovação de forma sistemática não foi Schumpeter, como pode parecer à primeira vista, mas o sociólogo francês Gabriel Tarde, no seu tratado ‘As leis da imitação’ (1890). Para Tarde, são as invenções e as ideias (e não um indivíduo, o empreendedor) o motor central da mudança social. A única forma de estas invenções se tornarem verdadeiros fenómenos sociais é através da imitação. Não é uma pessoa a inovar sozinha que provoca a mudança social; mas sim um conjunto de indivíduos, que replicam (imitam) a ideia. É também assim que podemos compreender a dinâmica social por detrás das inovações sociais e, mais tarde, numa perspetiva das bases para o topo, a sua consequência final: a institucionalização (a inovação torna-se a norma e a transformação social acontece).
O fim dos imaginários, o fim da inovação?
Ao longo da sua história, a ideia de inovação está intrinsecamente ligada a imaginários, isto é, visões para o futuro. Como vimos, desde a revolução industrial e de forma acelerada no pós-Segunda Guerra Mundial, que o imaginário subjacente ao conceito de inovação (tecnológica) é o do crescimento económico e da economia de mercado: é o imaginário capitalista. Para além disso, o que é interessante na manifestação mais recente e corrente do conceito de inovação é este ter adquirido a capacidade de se tornar ele próprio num imaginário incontestado, quase sempre ligado à ideia de uma economia de mercado impulsionada por uma qualquer inovação tecnológica que permita ganhar eficiência, vantagem competitiva e lucro. Até a sua variante social se manifesta hoje dentro do sistema, despojada da sua história revolucionária e promovida como forma de colmatar os efeitos negativos do modelo económico dominante. Inovar é bom, inovar é preciso. A inovação está na boca do mundo e é exaltada por todos como modelo a seguir: torna-se imaginário em si mesmo5.
Na última década, Portugal tornou-se um bom exemplo de imaginários de inovação em ação: tecnologia e inovação fazem parte da linguagem corrente de governos de diferentes cores políticas, que procuram tornar o país atraente para start-ups tecnológicas, nómadas digitais ou grandes eventos como a Web Summit. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as iniciativas para tornar Portugal num polo de inovação social. Mais do que caminhos para uma visão de economia e sociedade diferentes, a ‘Fábrica dos Unicórnios’ e o ‘Portugal Inovação Social’ tornaram-se eles próprios imaginários partilhados para o país.
A Reimagined Future. Créditos: SPRINTS for Climate
Quando a ideia se torna parte intrínseca do sistema, romper com a ordem estabelecida não é sequer uma possibilidade. Assim, paradoxalmente, ser imaginário (dentro do imaginário maior do sistema capitalista) retira à inovação a sua capacidade de contribuir para outros imaginários e assim gerar realmente algo novo, transformador. Não é, por isso, de espantar que, com tanta ‘inovação’ à nossa volta (nas narrativas, nas empresas, no dia-a-dia), haja ao mesmo tempo tão poucas ideias novas e tanta falta de imaginação. Na moda, celebra-se o vintage e vestimos ao estilo da juventude dos nossos pais. No cinema, aguardamos invariavelmente com entusiasmo pela estreia de um qualquer remake de um filme clássico. Na música, voltámos aos sintetizadores e aos sons do século passado.
Talvez seja preciso resgatar a inovação do seu imaginário, para que esta se torne novamente num meio e deixe de ser um fim. Assim, talvez possamos concentrar-nos em imaginar o(s) futuro(s) que queremos e começar a inovar melhor.
5 van Lente, H. (2021) ‘Imaginaries of innovation’, in B. Godin, G. Gaglio, e D. Vinck (eds) Handbook on Alternative Theories of Innovation. Cheltenham, UK; Northampton, MA: Edward Elgar Publishing, pp. 23–36.