Feminismos e ecofeminismo crítico
Álvaro Fonseca e Graça Rojão (Rede para o Decrescimento)
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As correntes feministas, na sua diversidade, ajudam-nos a perceber a crise societal à luz das assimetrias de poder existentes, pois colocam em evidência as estruturas de dominação patriarcal. Destacamos neste texto as propostas da economia feminista e do ecofeminismo crítico.
Economia, trabalho e (re)produção social
A economia feminista tem um contributo muito importante para a compreensão integral do sistema económico, que advém da sua reflexão em torno dos conceitos de economia, de trabalho e de produção. Defende uma noção de economia lata, isto é, que não se confina àquilo que é valorizado pelos mercados, e tem em conta todo o leque de atividades fundamentais para fazer face às necessidades do dia-a-dia, desocultando e valorizando assim as atividades não mercantis fundamentais ao nosso bem-estar, nomeadamente as que dizem respeito à satisfação de necessidades quotidianas das pessoas e das famílias, como cuidar das crianças, preparar refeições, lavar roupa, etc., mas também o voluntariado, a agricultura para auto-consumo, entre muitas outras.
As correntes feministas contribuíram ainda para afirmar uma noção de trabalho que não se restringe à ideia de mercadoria, medida pelo salário e remunerada pelo mercado. A sua conceção inclui o trabalho doméstico e de cuidados, realizados de forma gratuita principalmente por mulheres, e reconhece o seu papel fundamental na criação de bem-estar individual e coletivo. Não se trata de visibilizar o trabalho não remunerado para o colocar num patamar idêntico ao da produção mercantil, já que a proposta da economia feminista aponta no sentido de um outro modelo de organização social, que coloca no centro a sustentação da vida.
Intimamente ligada à ideia de economia, num sentido lato, e ao reconhecimento de todo o trabalho, nomeadamente do não remunerado, está também o questionamento do binómio produção/reprodução. A reprodução social consiste no processo que permite criar condições materiais para que o sistema tenha continuidade, ou seja, trata de produzir, manter e substituir geracionalmente a vida, sendo, portanto, indispensável para que o capitalismo ou a esfera dita produtiva possam existir. Se a economia convencional considera apenas produtivas as atividades com valor mercantil, a economia feminista mostra como as atividades quotidianas ligadas ao trabalho doméstico e de cuidados, classificadas como reprodutivas, ao invés de terem um papel secundário, são centrais, já que sem elas a vida não seria possível noutras esferas.
Estes questionamentos sobre o que é economia, trabalho e (re)produção contribuem para tornar mais evidente o papel do capitalismo patriarcal na manutenção das relações de subordinação das mulheres e no deslocamento de custos para a esfera doméstica. O capitalismo e o patriarcado fundiram-se, pois sem a opressão das mulheres e sem a desvalorização do seu trabalho (remunerado ou não remunerado) o capitalismo não poderia sobreviver. A desigualdade na divisão sexual do trabalho e a grande presença das mulheres no trabalho não-remunerado ilustram a secundarização da reprodução social e a tentativa de a subordinar à criação de lucro.
A conexão entre feminismo e ecologia está na base do ecofeminismo, um termo utilizado pela primeira vez em 1974 por Françoise d‘Eaubonne. Esta corrente dos feminismos considera que a opressão das mulheres e a devastação da natureza são fenómenos com a mesma raiz: o capitalismo patriarcal, evidenciando o potencial transformador de uma revolução simultaneamente ecológica e capaz de dar corpo a novas relações de género. Ao reconhecer a origem comum das crises sociais e ecológicas, o ecofeminismo mostra como os caminhos de uma verdadeira transformação social são incompatíveis com os princípios do capitalismo neoliberal (acumulação capitalista, proteção do lucro e da propriedade privada) como é o caso do embuste do capitalismo verde ou das versões do feminismo neoliberal, baseadas na meritocracia.
Sob o rótulo do ecofeminismo acomodam-se correntes distintas, nomeadamente as de cariz mais espiritualista e essencialista que, ao criticarem os privilégios masculinos, acabaram por apelar a características supostamente inatas, distintivas das mulheres. Estas correntes foram, e têm sido, alvo de uma crítica cerrada pela sua visão celebratória da mulher-mãe e da sua especial ética do cuidado, que contribuiu para alimentar as amarras que prendem as mulheres a papéis de género pré-determinados, atribuindo à genética o resultado de processos socio-históricos. Acresce ainda que estas correntes tenderam a conceber as mulheres como categoria unitária, ignorando outros fatores como, por exemplo, a classe social ou a origem étnico-racial.
O ecofeminismo crítico é uma corrente transformadora, que se afasta das visões espiritualistas e essencialistas e assume um feminismo ecológico, promotor de uma educação para o cuidado. O seu carácter especialmente integrador advém do facto de conseguir criar um campo de articulação entre movimentos feministas e ambientalistas, assumindo-se que nem todos os movimentos ecologistas são feministas, nem as correntes feministas demonstram sempre preocupações ecológicas. O ecofeminismo visa superar a divisão bipolarizada de papéis sociais, marcada pelas categorias de género socialmente construídas e contraria as relações de poder patriarcal que remetem as mulheres para a esfera doméstica e do cuidado, com uma suposta sacralização das virtudes que lhes seriam inerentes. Evidencia que as mulheres também são equiparadas à natureza e, tal como esta, são exploradas pelo sistema capitalista através do trabalho não pago, o alicerce fundamental da reprodução social. O capitalismo neoliberal equipara a Terra e o trabalho de cuidado a recursos passíveis de apropriação, que devem, portanto, ser mantidos gratuitos ou tão baratos e eficientes quanto for possível.
A noção integral de cuidados do ecofeminismo tem em conta o cuidado com as pessoas, mas também os cuidados ecossistémicos. Liberta a reprodução social da sua posição subordinada e instrumental em relação à produção e, desta forma, coloca no centro de todas as ações a sustentação da vida na Terra.
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