Outras Economias: de que se trata, afinal?

Graça Rojão (Rede para o Decrescimento)

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As utopias realistas têm a capacidade de acionar uma visão crítica do presente e de estimular uma práxis emancipatória. É nesse quadro que têm nascido e ressurgido iniciativas que apostam na experimentação social de alternativas, animadas por horizontes utópicos transformadores.

As estratégias de erosão do capitalismo, como sugere Olin Wright (2011), combinam a transformação intersticial com a transformação simbiótica, isto é, articulam, por um lado, utopias que nascem nas fissuras do capitalismo – de que as iniciativas alternativas são exemplo – com as lutas dentro do Estado, no sentido da regulação, através de ações como mobilizações cívicas que possam criar condições mais favoráveis ao desenvolvimento de iniciativas transformadoras. Há um leque de estratégias complementares que podem ser animadas por quatro impulsos predominantes: resistir à tentação hegemónica do capitalismo, nomeadamente por via de ações de oposição, protestos contra políticas, etc.; fugir ao capitalismo através do reforço das relações económicas não-capitalistas, de que o ativismo comunitário e a economia solidária são exemplos; domesticar o capitalismo, isto é, mitigar ou neutralizar alguns dos seus males por via da provisão pública de bens e serviços, por exemplo, de educação e saúde; e desmontar o capitalismo, subtraindo espaços ao mercado, o que acontece, por exemplo, através da criação dos bens comuns que desafiam a lógica da propriedade privada individual.

Debruçamo-nos aqui sobre as iniciativas alternativas, pela sua capacidade de rasgarem outros futuros. Elas emergem da possibilidade de materializar utopias e constituem uma potência transformadora e mobilizadora da esperança, já que, com a sua ação, afirmam que um outro mundo é possível. Podem dizer respeito a práticas socioeconómicas ancestrais, que sobreviveram e se foram transformando, ou podem ser iniciativas mais recentes, que contrariam de forma consciente os princípios capitalistas.

Situam-se quer em contexto urbano, quer em contexto rural, sendo aqui frequentes as práticas tradicionais baseadas em relações de reciprocidade, por vezes informais e com raízes comunitárias. Em Portugal, as práticas não-mercantilizadas mais ancestrais estão bem patentes nas relações de solidariedade e de cooperação rurais, por exemplo na gestão dos baldios e na entreajuda nas colheitas, onde assumem um papel socioeconómico relevante. Também em contexto urbano encontramos iniciativas de base local apostadas na transformação social, algumas delas herdeiras das organizações de economia popular e de cooperação operária. Uma boa parte das iniciativas mais urbanas tem raízes no século XIX e no debate em torno da ideia de proteção social, que esteve na base do associativismo operário desse século e das suas dinâmicas de resistência, que criaram experiências solidárias de ajuda mútua (as mutualistas), de cooperação e associação, onde foi patente a recusa da descontextualização da dimensão económica das outras dimensões da vida, nomeadamente a política, a social e a educativa. Na segunda metade do século XIX e na passagem para o século XX surgiram estatutos específicos: cooperativas, mutualistas e associações que acabaram por fragmentar o movimento em torno de especificidades estatutárias e favoreceram a sua incorporação no sistema económico dominante, em detrimento da dimensão política transformadora por que se pautava o movimento operário inicial.

Mais recentemente, têm emergido de forma significativa iniciativas que se articulam com movimentos sociais marcados por um pensamento crítico face ao modelo capitalista. Este amplo leque de iniciativas não corresponde a um resquício do passado ou a um recanto para idealistas anti-sistema; configuram antes uma realidade emergente, que tem vindo a ganhar dimensão, ainda que as suas origens sejam seculares.

Estas experiências articulam o pensamento crítico com a ação emancipatória, através da experimentação de futuros alternativos, reforçando assim um campo que é fulcral para a criação de uma sociedade pós-capitalista. A transformação social não é neutra e a explicitação dos valores defendidos pelas iniciativas é relevante. De modo geral, elas escapam à lógica de acumulação e assumem preocupações com o bem comum, concedendo especial atenção à dimensão não monetarizada da economia; defendem uma redistribuição de recursos orientada por princípios de justiça social; procuram reforçar a autonomia económica dos territórios; implementam processos de democracia direta e de autogestão;  assentam na ação coletiva e no reforço dos laços de confiança e valorizam a sustentabilidade ecológica e social.

Estas iniciativas podem ser redes de consumo alimentar agroecológico e solidário, mercados de troca de bens e serviços, por vezes com moedas alternativas, bancos de tempo alicerçados na reciprocidade, hortas comunitárias conviviais, centros comunitários de fruição cultural autogeridos, redes de comércio justo, cooperativas integrais, etc. O seu potencial não é apenas económico, já que constituem também um campo de realização de experiências sociais e políticas.

Podem ser animadas por impulsos distintos: de resistência e oposição (anticapitalistas), de reforma ou mitigação (neocapitalistas) e de superação (ou pós-capitalistas). Estes impulsos ou posicionamentos nem sempre são mutuamente exclusivos. É frequente encontrarmos nas iniciativas uma combinação entre modos de resistência e adaptações funcionais. Por exemplo, as cooperativas de economia solidária, de modo geral, conseguem articular dinâmicas mercantis, através da produção ou venda de bens e serviços destinados ao mercado, com lógicas solidárias que não se orientam para a maximização do lucro e onde se destacam as relações de reciprocidade e entreajuda. Em muitas iniciativas, por exemplo nas que se situam no campo da produção agroecológica, podem conviver, lado a lado, pessoas que se assumem anticapitalistas e que procuram contribuir para uma transformação radical do sistema, com outras mais adaptadas, que pretendem apenas aceder a alimentos de qualidade a um preço mais satisfatório. É importante destacar que as iniciativas estabelecem uma relação tensa com o contexto em que atuam, isto é, com o pensamento patriarcal de dominação, a ideologia do crescimento económico e as práticas mercantilistas e consumistas. Porém, não existe uma realidade absolutamente dual entre economia capitalista e economias alternativas, mas sim situações diversas que podemos situar num continuum. As iniciativas podem incorporar lógicas que fazem parte da economia capitalista já que não operam completamente à margem.

A procura de compreensão destas iniciativas não poderá estar centrada em métricas ou critérios que lhes são alheios como, por exemplo, a viabilidade económico-mercantil. É importante atender à sua inserção num contexto social, cultural e político específico e atender às mudanças possíveis que elas desenham. Um dos desafios que poderá potenciar a sua capacidade transformadora passa pelo reforço de uma visão crítica e sistémica de transformação social, reconhecendo a inter-relação entre os diferentes sistemas de dominação, o que exige uma perspetiva feminista, que busque desmontar as relações de dominação patriarcal; um pensamento ecológico, que rompa com a lógica extrativista; e uma atitude solidária, de enraizamento local, porque a vida inscreve-se no território.

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Referências

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