Sistema económico hegemónico:
um puzzle a desmontar
CIDAC
Tempo aproximado de leitura: 31 minutos
O capital é
correr através de siderais espaços comerciais infinitos
as cores a trincar o preto dos pés, a cabeça um zoado infernal
de cheiros.
loja após loja um hiperlink uma metatag uma gota
(não sei se o capital ocupou o universo,
mas já lhe instalou software e pop-ups).
vocifera: luzes, ação.
o capital é artesanal:
pão para levedar gourmet
souflê de casas crash sourbet.
é multitasking:
engole água, cospe armas, vende como fogo de artifício.
(às vezes fogo de artificio
outras banho de sangue)
o capital é
o capital é absurdo
o capital é o absurdo
o capital é o absurdo lugar
onde tirar férias é ir às compras de nada e vender uma cidade
aos abutres,
morrer de frio para poupar na eletricidade,
e consumir noventa e nove corpos só de inação.
prima a opção um,
vamos gravar,
a seguir desligue.
Judite Canha Fernandes (2017)
Para falarmos de “sistema económico hegemónico” poderá ser útil começar por desmontar a expressão e procurar o significado de cada palavra. ‘Sistema’ pode ser entendido como um conjunto de elementos ligados e interdependentes, uma estrutura dotada de relativo equilíbrio de longo prazo, que opera num determinado contexto e que com ele pode interagir. De notar que organizar a leitura do mundo de forma sistémica corresponde a uma representação desenvolvida no quadro de alguns campos de conhecimento ocidentais, que procuram, em maior ou menor medida, a interdisciplinariedade e a integração de vários conhecimentos.
‘Economia’, do grego “oikonomos”, significava, no contexto histórico grego, as regras que regiam ou deviam reger a gestão da casa ou da comunidade, as atividades que tinham por fim obter recursos para a vida e para o conforto da família, da casa ou do conjunto de cidadãs/os. Esta visão de economia manteve-se ao longo da história do pensamento económico, embora com muitos matizes. Assim, de forma básica, podemos dizer que a economia tem a ver com as formas e os recursos necessários para colmatar as necessidades humanas, indo desde um nível individual ao nível macro (países, regiões, mundo).
Sistema económico ou sistemas económicos são, assim, um conjunto de elementos interdependentes, estruturados, que visam colmatar as necessidades dos seres humanos através da gestão dos recursos existentes. Estes sistemas têm variado ao longo do tempo e no espaço geográfico e são resultado de processos longos conduzidos pelos seres humanos. Alguns sistemas ficaram localizados, alguns sucumbiram dando lugar a novos, outros expandiram-se no tempo e no espaço, tornando-se… hegemónicos. É o caso do sistema económico que envolve as nossas vidas nos últimos cinco séculos. Porque o chamamos de hegemónico? Diz-se hegemónico algo ou alguém que exerce poder, domínio ou supremacia política, económica, ideológica sobre outros de forma (quase) inquestionável.
Este sistema económico é apelidado com vários nomes, que correspondem a sentidos distintos mas conexos: capitalista, economia de mercado, neoliberal, global…
Entender um sistema fruto de séculos de desenvolvimento e transformação, a sua forma de funcionamento, o seu impacto na vida dos seres vivos não é tarefa fácil, tal como dificilmente conseguimos visualizar todas as peças de um grande puzzle. Isto, não só pela sua imbricação nas dimensões social, cultural, política e ecológica, como pelo facto de todas estas dimensões nos serem, geralmente, transmitidas de forma compartimentada. Precisamos, então, desmontar o puzzle! Para isso iremos mobilizar várias palavras, algumas que já evocámos, como “necessidades” e “recursos”, e outras como: trabalho, propriedade, tecnologia, produção, consumo, distribuição, lucro, capital.
Comecemos pela especificidade deste sistema económico, que é a acumulação infinita do chamado “capital”, capital esse que pode ter uma natureza material ou imaterial.
Como se chega a essa acumulação? Tomando o sistema económico como um conjunto de elementos interdependentes e estruturados, que visam colmatar as necessidades dos seres humanos através da gestão dos recursos existentes, o sistema capitalista foi germinando, ao longo dos últimos séculos, a partir dos sistemas que o antecederam. Essa germinação aconteceu através de diferentes fenómenos. A mercantilização do que chamamos “recursos”, que são aquilo que a natureza dá (a água, a terra, as plantas, os peixes, o ar, os minérios, …); dos mecanismos que os seres humanos inventaram para transformar a natureza noutros produtos (que podem ir do arado aos computadores), os chamados “meios de produção”; do trabalho, ou seja, da energia, tempo e força que os seres humanos usam para transformar a natureza noutros produtos; e da moeda, que corresponde à codificação de um valor abstrato que substitui a troca direta de bens e serviços.
Mercantilizar significa que qualquer uma destas coisas é passível de ser vendida e comprada. E para tal passam por um processo de privatização e de “coisificação” ou objetivação. Ou seja, os seres humanos, a água, o ar não são a priori de ninguém, a menos que vejamos o planeta Terra como propriedade natural apenas destes seres. Privatizá-los passa por um processo de criação de mecanismos que estão ligados à cultura, por exemplo, no chamado “Ocidente” esses mecanismos foram a criação do Direito romano e a noção de propriedade.
Para naturalizar estes processos, para que todas as pessoas os deem por óbvios, necessários e … naturais, deu-se um outro: a desvinculação afetiva entre seres humanos e esses “recursos”, a sua objetivação. Um outro fenómeno foi a desvinculação entre as atividades produtivas e os meios materiais que as permitem. A industrialização, inclusive a industrialização da atividade agrária, favoreceu essa desvinculação. Pouco a pouco, a população dependente de um salário pago por outrem, ou seja, que tem de vender o seu trabalho para suprir as suas necessidades, foi crescendo.
Por outro lado, algumas pessoas foram adquirindo a propriedade desses meios, que podem ser materiais ou imateriais. Fizeram-no e fazem-no de forma direta, comprando por exemplo maquinaria e montando uma fábrica, ou indiretamente, através da aquisição de ações de empresas, sem deter necessariamente uma fábrica ou uma empresa inteira.
Estes/as proprietários/as retiram lucro da diferença entre as receitas resultantes da venda de produtos ou serviços e os gastos (pagamento de salários, por exemplo) decorrentes do processo produtivo. Isto porque, a transformação de recursos, através do trabalho, em novos produtos cria um novo valor. Mas, sobretudo, nesse processo produtivo há uma parte do valor resultante do trabalho que não é remunerado, a chamada mais-valia. Ou seja, os e as trabalhadoras realizam mais valor do que aquele pelo qual são remunerados.
O objetivo destas pessoas (ou empresas ou outras entidades) é aumentar incessantemente o lucro. Para alimentar a maximização dos lucros e a acumulação de capital (que poderemos chamar de “riqueza”), estas pessoas buscam incessantemente novas fontes de recursos e de trabalho baratas. Isso conduz a dois tipos de movimento: o de expansão, que foi ganhando corpo a partir do século XV (que diz respeito a dois processos históricos, o colonialismo e a globalização); e, por outro lado, o de deslocalização das unidades de produção sempre que os lucros esperados compensem os gastos em deslocalizá-la. Estes mecanismos de expansão vão assim integrando – em diferentes formas e medidas e com diferentes propósitos – pessoas e recursos. De tal modo que, na atualidade, poucos serão os lugares no mundo que não fazem parte do sistema, que o servem ou lhe são úteis, de algum modo.
Conferência: Crise e reconfigurações no âmbito do Sistema-Mundo. Com Immanuel Wallerstein
Este vídeo é uma síntese das ideias apresentadas por Immanuel Wallerstein na conferência “Crise e reconfigurações no âmbito do Sistema-Mundo” organizada pelo CIDAC a 14 de fevereiro de 2013, no âmbito do projeto “Contraponto – leituras plurais do mundo, os modelos de desenvolvimento em questão” que visa trazer para o debate na sociedade portuguesa, diferentes modelos de desenvolvimento.
As pessoas detentoras de capital têm sido e são, porém, uma minoria. O que acontece à vasta maioria da população mundial? Trabalha. Trabalhar pode ir desde recolher fruta de árvores para alimento básico, extrair minério de minas ou costurar um casaco, até fazer análises laboratoriais, etc. No sistema capitalista, convivem diferentes formas de trabalho: independente, assalariado, escravo, formal, informal, em diferentes áreas e contextos. Mas para que serve o trabalho? Porque temos de trabalhar? Em princípio, trabalhamos para conseguir um rendimento para… cobrir necessidades. Quem define a forma do nosso trabalho? E que necessidades são essas? Regra geral, o trabalho, mesmo para trabalhadores/as independentes, não é ditado pelas próprias pessoas e as necessidades a cobrir pelo rendimento que auferem vão muito além de necessidades básicas, como garantir alimento. Assim, por um lado, o sistema capitalista, criou uma massa assalariada e, por outro, mercados para os produtos que são produzidos.
A transformação de população em pessoas assalariadas – a proletarização – foi importante para criar um conjunto de pessoas dependentes de outras, perdendo autonomia relativamente à obtenção do seu rendimento. O seu trabalho chama-se assalariado, porque depende de um salário, e formal, porque com as lutas sucessivas de trabalhadores/as se foram conseguindo direitos e vínculos laborais. Estes processos estão também eles intimamente ligados à industrialização, mas vão além dela, porque nem todas as pessoas no mundo deixaram de ser agricultoras, abandonando o mundo rural – num fenómeno muitas vezes naturalizado como foi e continua a ser o “êxodo rural” – ou deixaram a economia dita doméstica para trabalharem também fora de casa. Muitas acumularam esses diferentes tipos e formas de relação com o trabalho – assalariado e não assalariado – algo que é, geralmente, denominado de semiproletarização.
A semiproletarização da população mundial foi e continua a ser importante para manter salários baixos e, sobretudo, para manter uma grande parte de tarefas de cuidado e de reprodução – como cozinhar, cuidar dos filhos e filhas, cuidar das pessoas de idade avançada, … – o chamado trabalho reprodutivo, realizado maioritariamente por mulheres, sem custos para o sistema. Ainda que o sistema capitalista tenha vindo a mercantilizar também as atividades reprodutivas, criando novos mercados.
Para baixar ainda mais os custos do trabalho formal, surgiu, nas décadas de 70-80 do séc. XX, com alguma expressão, um outro fenómeno: a precarização. As pessoas trabalham para outrem, mas sem vínculos contratuais e, geralmente, acartam com os custos dos meios de produção sem com isso conseguir autonomia. Pensemos, por exemplo, em quem trabalha a recibos verdes ou nos/nas trabalhadores/as “uberizados/as” ou “de plataforma”.
Tanto as pessoas assalariadas (precárias ou não, muitas com trabalhos supérfluos) como as que não auferem um salário formal têm uma caraterística comum: consomem. É fundamental ao sistema que as pessoas tenham a possibilidade de consumir bens ou serviços, o que é facilitado por um outro mecanismo: o acesso ao crédito ao consumo (desde os cartões dos supermercados ao crédito para compra de casa), de modo a garantir a circulação de capital.
Entra aqui uma outra peça do puzzle: a divisão entre produção e consumo, acentuada pela industrialização. Ainda que todas as pessoas, de algum modo, sejam produtoras e consumidoras, esta distinção cultural e económica é fundamental uma vez mais para quebrar a dimensão de autonomia face ao todo. As pessoas são consumidoras de quê? De produtos e serviços para cobrir necessidades básicas, mas também de produtos e serviços para cobrir necessidades inventadas e promovidas. Essa invenção é necessária para responder a outra faceta do sistema: o aumento constante da produção ou produtivismo.
Outra peça importante, ligada ao produtivismo, é a ideia de inovação, que transmite uma noção de andar em frente, de crescimento, justificada, geralmente, pela busca da melhoria das condições de vida. A inovação é fundamental, porque implica a substituição perene de bens e serviços, tornando-os rapidamente obsoletos ou simplesmente programando-os para se estragarem e necessitarem de ser substituídos por novos.
O caráter inovador é aplicado não só aos processos produtivos, mas às próprias pessoas. O sujeito no capitalismo tem de ter um espírito livre, criativo e empreendedor, que faz a máquina caminhar até… não se se sabe bem onde. A inovação também é necessária porque estas pessoas e as suas empresas competem umas com as outras para obterem mais vendas, mais serviços, logo têm de apresentar novidades.
O outro lado desta moeda é o lado cultural: a invenção da publicidade e do entretenimento comercial, que foi introduzida nas rádio-novelas, no cinema até às séries nas plataformas de streaming, passando pelas redes sociais – as reais e as virtuais, pela rua… Estimulam-se gostos, modas, fantasias. Criam-se necessidades, criam-se mercados.
Mercado é outra expressão marcante deste sistema económico, mas não é uma especificidade sua. Mercados existiram ao longo da história, geralmente, como lugares físicos onde as pessoas se encontram, umas para vender, outras para comprar, o que podemos chamar de encontro entre a oferta e a procura. Para que essas transações existam é necessário encontrarem um valor. Os mercados são assim o lugar onde se define valor para mercadorias ou serviços.
A diferença é que, no sistema capitalista, o mercado pode deixar de ser físico e passar a ter uma natureza etérea. A base do sistema económico deixa – aparentemente – de ser a fábrica, os campos, a lógica de produção material, para serem as bolsas, as ações, os dados. Há igualmente uma aparente desmaterialização do lucro, que não resulta tanto da extração do valor do trabalho e dos recursos, mas da especulação sobre um valor que ninguém sabe bem o que é. Onde quem mais ganha poderá já não ser o/a detentor/a dos meios de produção, do trabalho e dos recursos, mas o ou a gestora, o CEO, a pessoa ou a empresa que detém ações, créditos, fundos, etc.
Estes mercados têm vontades, crises, desejos, emoções, parecendo até que os seres humanos deixaram de existir dentro dessa realidade. São sujeitos que competem com outros sujeitos-mercados, sujeitos impessoais que subordinam a sociedade aos seus desejos e disposições. Estes fenómenos marcam a passagem do chamado “mercantilismo” para o capitalismo financeiro.
Dizemos que a desmaterialização do lucro é aparente, ou pelo menos é parcial, porque a base material destes processos mantém-se. São necessárias baterias, computadores, geradores, e para tal é preciso água, minerais, combustível fóssil ou renovável… A lógica produtiva perde importância face à lógica financeira e especulativa, mas não desaparece.
A financeirização do sistema económico hegemónico aconteceu de forma cíclica, apoiada por entidades que hoje conhecemos como bancos, tendo-se tornado, porém, na contemporaneidade uma faceta estruturante do capitalismo. Ao nível dos Estados, para além dos bancos, duas organizações internacionais têm sido fulcrais para esta etapa do sistema: o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
O que é que tem valor neste sistema? A que é que damos valor? O valor é algo subjetivo, porque nem todas pessoas atribuem igual valor às mesmas coisas. Mas algumas coisas têm um valor em si mesmas, pela importância que têm, uma vez mais ligadas às necessidades humanas: o alimento, a casa, por exemplo. Nos mercados físicos, as pessoas trocavam, primeiro, de forma direta, e mais tarde de forma indireta através de moeda, em sistemas de valor muito localizados e ligados ao seu sistema cultural, social… Com a industrialização, com a sociedade de serviços e de informação, com o surgimento dos Estados, o sistema de trocas foi-se complexificando. A troca – que é em si uma relação social porque implica pelo menos duas pessoas – e a atribuição de valor que a medeia foram-se alterando.
As moedas tornaram-se a intermediação de relações indiretas, de troca entre produtos e serviços de natureza diferente. Por exemplo, a moeda serve para “trocar” horas de trabalho por batatas… A moeda só tem valor se tal lhe for atribuído e tem uma base material que a suporta. Durante muitos séculos, essa base material foi o ouro. O padrão-ouro foi depois substituído pelo padrão-libra e, hoje, existem outras moedas que servem de padrão (de suporte), das quais se evidencia o dólar. O valor da moeda (cunhada por Estados ou regiões, no caso do Euro) é decidido na base do valor total que um Estado ou conjunto de Estados têm no sistema económico internacional e, em alguma medida, pode ser decidido pelas suas instituições, bem como pelos mercados financeiros.
Todas estas dimensões parecem corresponder às necessidades de um sistema cada vez mais integrado, mais alargado, na sua busca de uma vida melhor para todas as pessoas. É real a melhoria das condições básicas de vida (nutrição, esperança média de vida, etc.) para uma parte da população do planeta, bem como o crescimento demográfico exponencial a que temos assistido nas últimas décadas. No entanto, todos os fenómenos acima descritos têm assentado igualmente no crescimento do individualismo e da atomização social, na concentração da riqueza nas mãos de uma parte reduzida da população mundial e, por conseguinte, no avolumar das desigualdades socioeconómicas em todo o mundo. E, apesar da filosofia dominante (o liberalismo e, mais recentemente, o neoliberalismo) postular que a competição livre entre mercados e entre seres humanos é o que permite o crescimento da riqueza e, por acréscimo, a melhoria da vida das pessoas, nem esta última é totalmente real nem os mercados nem os seres humanos são totalmente livres e soltos das amarras da economia capitalista. E, sobretudo, este sistema assenta mais na insegurança e na crise constante do que na certeza e no conforto que os mercados supostamente criariam.
O que vemos em qualquer setor económico e financeiro é não a livre competição entre indivíduos e organizações empreendedoras e inovadoras, em mercados perfeitos que geram sucessivamente melhores produtos e serviços, mas empresas que controlam as cadeias de produtos e serviços da produção à comercialização, dentro de um determinado setor ou transversais a vários setores, uma concentração empresarial que conduz à oligopolização da economia. Existem instituições que dizem velar pela livre concorrência e pela não oligopolização, através de regulação, enquanto outras apoiam, através de fundos públicos, esses mesmos processos de concentração. Ouvimos falar regularmente em algumas dessas instituições, como a Organização Mundial do Comércio ou a própria União Europeia, ou de tratados internacionais de comércio, que alegam manter o comércio livre entre Estados.
Aqui surge uma outra peça do puzzle, aliás… duas: a filosofia política ou ideologia e o papel e lugar dos sistemas políticos e suas instituições.
Sociedade, cultura, política, ideologia – o sistema económico não está isolado
O desenvolvimento do sistema económico capitalista, como de qualquer outro tipo de sistema construído por seres humanos, é, como dissemos anteriormente, uma construção imbricada nas dimensões social, cultural, filosófica, política, ecológica. Podemos colocar a ênfase determinística mais numa ou noutra dimensão, mas dificilmente podemos dizer qual nasceu primeiro. O que é importante é relevar que as ideias, valores e princípios imperantes conferem justificação e legitimidade a ações de natureza económica e política. Veja-se, por exemplo, a doutrina filosófica e religiosa que justificou a subtração da natureza humana às populações ditas indígenas, um pouco por todo o mundo, para “permitir” a escravatura, o domínio, enfim, a colonização. Na Europa, a filosofia política que coadjuvou o sistema capitalista foi o liberalismo. Dizemos filosofia política porque contém uma visão de sociedade e de organização política da mesma. Capitalismo, liberalismo e Estado são o tripé que organiza grande parte da vida, pelo menos na Europa, há dois séculos.
Capitalismo e liberalismo fixam o papel que o Estado e o sistema económico devem ter e como se relacionam. O Estado assegura uma regulação mínima do sistema económico, a segurança interna e externa, mantém o consumo alto e o nível de conflitualidade social baixo. Nos anos 70-80 do século passado, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, desenvolveu-se uma nova corrente de pensamento, o neoliberalismo, que elevou ainda mais esse ideal: todos os setores da vida (educação, saúde, energia, etc.) deveriam ser privatizados, à semelhança do que já acontecia em alguns países da América do Sul, como no Chile.
É a essa lenta e gradual privatização e mercantilização da vida que assistimos um pouco por todo o mundo. Porém, essa privatização não existe sem o apoio direto ou indireto dos Estados e o contributo das/dos suas/seus cidadãs/os. O Estado financia os indivíduos empreendedores e as empresas diretamente, através da atribuição de subsídios e subvenções, e, indiretamente, através da baixa taxação do rendimento do capital.
Mas o sistema capitalista não convive ou conviveu apenas com a ideologia liberal ou neoliberal. No seu desenvolvimento e alargamento, foi-se relacionando – e abarcando – com diferentes ideologias e regimes políticos. Assistimos, por exemplo, à transformação de regimes ditos socialistas ou comunistas em regimes que promovem “o capitalismo de Estado”. E mesmo os regimes que defendem ideologias distintas do liberalismo no que diz respeito à distribuição da riqueza, não deixam de perfilhar, enquanto ideal económico, o progresso, o crescimento infinito, a industrialização.
Deste modo, dificilmente podemos falar de um sistema económico isoladamente, porque a economia é uma forma de relação entre seres humanos, não é um sistema abstrato e acima de nós, com uma existência em si mesma, seja o sistema capitalista ou qualquer outro. Olhar e tentar entender relações económicas passa por olhar e entender outras dimensões da vida: as relações sociais, culturais, políticas, a filosofia e os sistemas de valores e normas vigentes, a educação, a saúde, a ecologia…
A dimensão da cultura e do conhecimento é vasta, passa pela criação de um sistema de valores, de visões do mundo, do tempo, do espaço e visões sobre o Outro. O sistema capitalista está fortemente imbuído do espírito da linearidade do tempo. Progresso, modernização, crescimento, desenvolvimento são algumas das palavras que exprimem esse espírito. As pessoas que não abraçam esse ideal são consideradas atrasadas e conservadoras. Pensemos, por exemplo, na forma como os e as camponesas passaram a ser vistas nas últimas décadas. O seu conhecimento, bem como o de todas as pessoas que não fazem o percurso académico canonizado, foi qualificado como “empírico”, “tradicional”. Conhecimento esse rebaixado para segundo plano na hierarquia (ou seja, no valor que lhe é dado) social, cultural, económica. A subalternidade – condição da pessoa dominada – de pessoas, coisas e conhecimentos é intrínseca ao sistema capitalista. A natureza é uma coisa que se pode ter, dominar, tal como são os corpos de pessoas (das mulheres, das pessoas racializadas). E essa relação de dominação e de propriedade é justificada não só por um sistema de valores, mas também por um sistema de normas, no caso do dito Ocidente pelo Direito.
Esse esquema de valores assenta também na ideia de racionalidade científica – consagrada pela escola de pensamento cartesiana – que se tornou um dogma inatacável, para a maioria da sociedade. A objetividade, a neutralidade e a especialização são três pilares dessa racionalidade. A objetividade e a neutralidade ofuscam a perceção de parcialidade e de posicionamento ideológico, para que se acredite que qualquer processo – económico ou outro – é isento. A especialização, defendida como importante para o aumento da produtividade dos seres humanos, parcela a nossa visão do todo em que vivemos. Especialistas numa coisa, cegos para outras.
Estes aspetos afetam também a forma como encaramos… a economia. Embora seja, no fundo, uma relação entre seres humanos e entre estes e a natureza, em que os primeiros usam – de forma mais ou menos abusiva – a segunda, para colmatar as suas necessidades – mais ou menos básicas – a complexificação deste conjunto de relações e a conceção da economia como um campo científico retiraram às pessoas não-especialistas a possibilidade de ler, perceber e logo de modificar, se assim o entenderem, as relações económicas de que fazem parte. Quando muito vemos (e vivemos) as manifestações – as pontas do iceberg – mas não o sistema, embora muitas vezes digamos que “a culpa é do sistema”. A economia é um campo de valores e de ideologias, mas é retratada e concebida como uma ciência neutra feita de leis “naturais” como, por exemplo, a lei da oferta e da procura, ou o crescimento, medido por conceitos técnicos e restritos como o célebre PIB (Produto Interno Bruto).
A conceção técnico-científica e especialista de algo inerente à nossa vida, retira-nos a capacidade e a possibilidade crítica sobre a mesma, isto é, a dimensão política inerente às escolhas. Esta conceção – hegemónica – de economia é, assim, também ela uma construção histórica, resultante não somente da aceção técnico-científica do conhecimento como do próprio liberalismo e que se corporizou naquela que é considerada a escola clássica da economia. No entanto, apesar de hegemónica, existem outras conceções de economia, mesmo no “Ocidente”.
Mas temos que destacar três aspetos. Um, a crise económica é uma situação permanente e não excecional. Dois, às crises económicas estão associadas crises de outra natureza: crise ecológica, manifestada na diminuição da biodiversidade, nas alterações climáticas, entre muitas outras manifestações; crise alimentar, manifestada na falta crónica de alimentos para uns e na alimentação pouco nutritiva e em excesso, para outros; crise social, manifestada como já sublinhado nas desigualdades estruturantes que servem o sistema, na violência racista, étnica, sexista. Estas crises são manifestações, mas são também linhas estruturantes do sistema capitalista. Em si mesmas e isoladas podem não ser novidade na existência humana, mas o cruzamento de todas elas parece ser algo relativamente novo no Planeta, uma espécie de autofagia deliberada e consciente. E, três, as crises económicas têm um substrato real, mas, do ponto de vista simbólico, são igualmente úteis ao sistema, porque criam medo, criam fantasmas, criam um clima de instabilidade perene que torna os seres humanos vulneráveis, por exemplo, a ideologias sociopolíticas xenófobas ou a um maior controle social.
Por fim… a crise. Quantas vezes na nossa vida ouvimos falar de crise? Saltamos de crise em crise: seremos pessoas azaradas? A contínua produção de artefactos, de serviços, de capital especulativo – justificada pela criação artificial de escassez e de necessidades – gera ciclicamente momentos em que o próprio sistema económico ou não consegue escoar produtos (por via do consumo ou outro) ou não tem capital material correspondente ao capital financeiro especulativo (por exemplo, as bolhas do imobiliário). Cada crise tende a ser o gérmen de novas formas de produção (material ou especulativa), o que faz surgir novos ciclos económicos. Assim, as crises são a regra do sistema capitalista.
No entanto, todos os sistemas, mesmo os mais hegemónicos, não o são na totalidade. As brechas existem e sempre existiram. Podemos vê-las de duas perspetivas: uma, enquanto úteis ao sistema, como já dissemos, a economia dita “informal” ou a chamada “semiproletarização”, que aconteceu, por exemplo, no centro e norte de Portugal, em que a população ainda camponesa, trabalhou parcialmente na indústria. Ou noutra, como formas de resistência do ponto de vista teórico ou prático ao sistema, por parte de pessoas, grupos, coletivos. Mas, para vermos essas brechas, precisamos de outras lentes, de outras sensibilidades, pois o sistema de valores e de práticas socioeconómicas em que vivemos coloca-as à margem.
Para além de tentarmos ver essas brechas, segue sendo importante questionarmo-nos como e porque é que este sistema – um metabolismo que suga energia e recursos materiais de todos os cantos do planeta, expandindo as relações de exploração entre seres humanos e entre estes e a Terra – se foi construindo e se foi construindo desta forma – e porque é que o aceitamos.
Bibliografia e referências
Caldas, José Castro & Louçã, Francisco (2010), Economia(s). Porto: Edições Afrontamento
Fernandes, Judite Canha (2017). O mais difícil do Capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas. Bragança Paulista: Editora Urutau
Observatório sobre Crises e Alternativas (2012). Dicionário das Crises e das Alternativas. Coimbra: Almedina
Patel, Raj & Moore, Jason (2018). A história do mundo em sete coisas baratas. Lisboa: Editorial Presença
Rethinking economics & The New Weather Institute. (2017) Thesis for an Economics Reformation. Disponível em: https://www.newweather.org/wp-content/uploads/2017/12/33-Theses-for-an-Economics-Reformation.pdf
Solidarity Economy Association. Disponível em: https://solidarityeconomy.cargo.site/
Wallerstein, Immanuel (2001) Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto