Quando multinacionais atacam os Estados ou

Uma “justiça” à medida do investidor: o ISDS

TROCA

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“Permitir que empresas estrangeiras processem governos por perda de receitas é terrorismo legal – e tem de acabar.”

Joseph Stiglitz

“Não interessa se se trata de plutónio líquido destinado aos cereais de pequeno-almoço de crianças. Se o governo proíbe um produto e uma (…) multinacional perde lucros, a multinacional pode exigir uma indemnização.”

Árbitro de processos ISDS citado por Joseph Stiglitz

Uma arma afiada nas mãos dos mais poderosos

Nas últimas décadas, uma das grandes prioridades e anseios dos governos do mundo é a captação de investimento estrangeiro, visto como uma enorme oportunidade para impulsionar o crescimento económico. Para atraírem os investidores, os governos estão dispostos a (quase) tudo, desde isenções fiscais, subsídios e apoios financeiros diretos até à simplificação de trâmites burocráticos, acesso preferencial a mercados através de Tratados de livre comércio, Programas de Capacitação, criação de Zonas Económicas Especiais, etc.

Menos conhecido é um outro privilégio, ou por outra, uma arma, que os governos oferecem aos investidores para atacarem os estados e os seus cidadãos. Essa arma chama-se ISDS e é a sigla em inglês do mecanismo Resolução de Litígios entre Investidores e Estado: nada mais, nada menos, do que um sistema de justiça paralelo ao sistema judicial público, em que as sentenças de tribunais constituídos por três árbitros1 privados são superiores às dos Estados e nos quais as leis nacionais nada contam.
O uso desta arma está reservado exclusivamente aos investidores estrangeiros que investiram num Estado anfitrião, quando alegam que nova legislação pode prejudicar os seus lucros futuros, as suas “expectativas de lucro”. Neste caso, os investidores estrangeiros têm acesso direto à arbitragem internacional para processar o Estado anfitrião e obterem indemnizações milionárias.

1  No Direito, a arbitragem é um método de resolução de conflitos, no qual as partes definem que uma pessoa ou uma entidade privada irá solucionar litígios apresentados pelas partes, sem a participação do poder judiciário.

 

EXEMPLO DE CASO ISDS: No processo Rockhopper contra Itália, uma companhia petrolífera britânica processou a Itália pela decisão de recusar uma licença para a exploração de um campo petrolífero offshore. O tribunal arbitral decidiu a favor da Rockhopper, condenando a Itália a pagar mais de 240 milhões, incluindo juros, como indemnização. Muito mais do que a empresa tinha investido. Conclusão: para manter o petróleo no solo, os/as cidadão/ãs italianos/as têm de pagar centenas de milhões.

Esta arma nunca pode ser usada no sentido inverso, pois nunca um Estado poderá usar o ISDS para responsabilizar investidores, por quaisquer danos que possam ter causado ao país. Parece incrível, certo? Mas há mais, muito mais. Este tratamento VIP dá-se tanto a nível substantivo como a nível processual. Vejamos:

A nível substantivo: através do ISDS, os investidores estrangeiros tornam-se sujeitos de Direito internacional, elevados a um patamar jurídico equivalente ao de Estados soberanos, e adquirem o privilégio de processar diretamente um Estado.

Além disso, a única base jurídica que rege os processos ISDS são as cláusulas dos tratados bilaterais de proteção do investimento (BIT na sigla em inglês) ou os capítulos dos acordos de comércio livre relativos à proteção dos investidores. Nem a Carta de Direitos Humanos, nem nenhuma lei nacional, nem o bem comum: os árbitros só têm que garantir a aplicação do respetivo BIT. Estas “leis” outorgam aos investidores estrangeiros direitos extremamente especiais e amplos, que vão muito além dos direitos de propriedade que as constituições nacionais e as leis europeias garantem. E porque se baseiam em definições vagas e difusas dos direitos dos investidores, permitem interpretações muito amplas que levam a decisões inconsistentes e arbitrárias dos tribunais arbitrais.

Por exemplo, vejamos o caso da “Proteção contra a Expropriação”; inicialmente, isto significava que, em caso de expropriação ou nacionalização dos seus investimentos, os investidores teriam direito a ser indemnizados. Porém, nas últimas décadas, a “Proteção da Expropriação” transvestiu-se, extravasou-se e começou a incluir a “expropriação indireta”, ou seja, qualquer decisão política, p.ex. normas ambientais, climáticas, laborais e de proteção alimentar, que alegadamente pudesse prejudicar o valor de um investimento, sendo assim base suficiente para intentar um processo ISDS com exigência de indemnização que podem ascender a milhares de milhões.

Por isso se considera que o ISDS afeta o “direito a regular” dos Estados, ou seja, a sua soberania. De facto, a simples possibilidade de sofrerem um processo ISDS tem sobre os Estados um efeito intimidatório, que é conhecido como “regulatory chill”, intimidação regulatória. As multinacionais obtêm assim o poder de “disciplinar” os estados de acordo com os seus interesses. Este poder intimidatório do ISDS é uma ameaça à própria Democracia, assim como à ação pela justiça climática, aos direitos humanos e ao desenvolvimento económico justo.

EXEMPLO DE INTIMIDAÇÃO REGULATÓRIA: Além de dezenas de casos em que autoridades públicas assumiram publicamente ou em documentos internos que foram condicionadas nas suas políticas pela possibilidade de acionamento do ISDS, é conhecido o caso do governo da Indonésia, que isentou uma empresa de extração da proibição de mineração a céu aberto em florestas protegidas, por recear que a proibição fosse contestada através do ISDS.

A nível processual: Quando uma transnacional intenta uma ação ISDS contra um Estado, pode fazê-lo diretamente, contornando os tribunais nacionais. É então criado um “tribunal” arbitral exclusivamente para esse litígio (“tribunal ad hoc”)2. Este “tribunal” é composto por 3 árbitros (juristas privados, especializados em Direito comercial internacional e orientados para o lucro), escolhidos da seguinte forma: o investidor escolhe um árbitro para defender os seus interesses, o Estado escolhe o seu defensor e este dois árbitros juntos escolhem o terceiro, que fará o papel de “Juiz” arbitral. O queixoso participa assim na composição do “tribunal”. As decisões que tomam estão acima do poder judicial nacional e são vinculativas e executórias: não existe um mecanismo de recurso nem obrigação de prestação de contas, como consagrado nas estruturas de justiça pública.

Hino ao isds

Letra e Música: Eduardo Proença

2 Os tribunais arbitrais ISDS ocorrem ao abrigo de certas instituições que lhes dão um enquadramento legal e institucional. A principal é o Centro Internacional para a Resolução de Disputas relativas a Investimentos (CIRDI), do Banco Mundial, em Washington. As sentenças arbitrais proferidas pelo CIRDI são executáveis em 161 países, que aderiram à Convenção do CIRDI.

Críticas fundamentais ao ISDS

Há décadas que as críticas acérrimas ao ISDS proliferam, oriundas de ONGs, académicos e sindicatos. A crítica mais óbvia é muito simples: o ISDS viola o princípio da “igualdade perante a lei”, garantindo aos investidores estrangeiros mais direitos e poderes do que aos indivíduos ou às empresas nacionais, que não têm acesso a este universo legal paralelo.

Mas há muitas outras, entre as quais:

3 Por exemplo, em muitos dos casos contra países da América Latina, os investidores foram defendidos pelos escritórios de advocacia Freshfields Bruckhaus Deringer (59 processos), seguido por King & Spalding (34) e White & Case (21). No caso ISDS instaurado contra Portugal pela falência do BES, as sociedades que defendem os fundos de investimento que acusam Portugal são a Fietta e a PLMJ Advogados (da qual são sócios os ex-governantes Pedro Siza Vieira, e Nuno Morais Sarmento) e a Saadeh Rahman. As que defendem Portugal são a Foley Hoag, e a Cuatrecasas. Ver mais exemplos aqui.

Cada vez mais casos

Com todos estes privilégios para os investidores, não admira que os casos de ISDS tenham aumentado vertiginosamente: um sistema que foi criado nos anos 50/60 para proteger os investidores estrangeiros em países em que o sistema de Justiça não oferecia garantias de independência, tornou-se generalizado: enquanto em meados dos anos 90, eram conhecidos uma dúzia de casos, em 2024, o seu número (conhecido) ascende a 1.401.

Os valores de indemnização também aumentam continuamente: a média das indemnizações na última década (2014-2023) foi de 256 milhões de dólares, quando na década anterior tinha sido de 98 milhões de dólares.

Segundo uma reportagem do Guardian, desde 1976 foram atribuídos a investidores privados mais de 120 mil milhões de dólares de dinheiro público, dos quais 84 mil milhões só para a indústria dos combustíveis fósseis.

Média do valor das indemnizações em milhões de USD

O ISDS e a UE

Em março de 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu, com a sua sentença no chamado “caso Achmea”, que os acordos de arbitragem em tratados de proteção de investimentos entre Estados-Membros violam o Direito da UE. Desde então, não só foram terminados os acordos intra-UE que incluíam ISDS, como a UE passou a incluir nos seus acordos o Sistema de Tribunais de Investimento (ICS em inglês), um mecanismo de resolução de litígios entre investidores e Estados ligeiramente reformado. No entanto, o ICS apenas contém melhorias processuais e continua a conceder amplos privilégios aos investidores estrangeiros, enquanto nem o Estado, nem as comunidades afetadas, têm o direito de utilizar o mesmo mecanismo contra violações dos direitos humanos ou ambientais das empresas.

É imperativo acabar com o ISDS

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O ISDS é profundamente injusto, ameaça a própria democracia e pode ser usado para obstruir a transição energética. Está nas mãos dos próprios governantes neutralizarem essa arma, pois são eles que se submetem voluntariamente ao ISDS. O mais inacreditável, é que não existe evidência empírica de que o facto de um estado permitir o uso de ISDS aumente o investimento direto estrangeiro. Trata-se apenas de um mito, que as transnacionais conseguiram ancorar para aumentarem o seu – já tão imenso – poder.

Por isso, a TROCA, juntamente com dezenas de outras ONGs, estão a levar a cabo uma campanha contra o ISDS, informando a sociedade civil e apelando ao fim do mesmo.