A comida é um assunto do povo
Reflexões do ciclo de debates "Os direitos básicos fora do capitalismo"
Patricia Dopazo e Gustavo Duch, Revista Soberanía Alimentaria, Biodiversidad y Culturas (SABC)
Fotos: Purificación Murillo Vasco
Tradução: Aurora Santos
Texto publicado originalmente no n.º 53 da Revista SABC, disponível aqui.
Tempo aproximado de leitura: 15 minutos
Mercantilização é uma palavra que usamos e praticamos habitualmente. Mas temos a certeza do seu significado? Se procurarmos nos dicionários, a questão é clara: “processo de transformação de bens em mercadorias com fins lucrativos”. Então, se os alimentos são um produto mercantilizado e até especulativo, na medida em que estão presentes nas principais bolsas de valores, estamos a assumir que sim, que se pode pôr um preço aos alimentos e comercializá-los com fins lucrativos?
Direitos discriminados
Quem há décadas respondeu a esta pergunta foi La Vía Campesina com o seu primeiro lema: “os alimentos não são uma mercadoria”. Consideravam que dar-lhes este tratamento, isto é, assumir que a alimentação pode funcionar no quadro capitalista, constituía a base das injustiças e problemáticas sofridas pelo campesinato. Para quem não tem a opção de produzir comida, aceder a ela apenas pela via da mercantilização implica que uma parte do nosso tempo, com toda a certeza, esteja dedicado a um trabalho remunerado, quer este enriqueça o tecido da vida, quer não, quer suponha exploração quer não. Reciprocamente, para quem produz alimentos, o seu objetivo de alimentar a população passa pouco a pouco a centrar-se exclusivamente na sustentabilidade económica, na procura do máximo rendimento e na competição, o que supõe intensificar a produção com mais fatores de produção químicos, mais monocultivos, salários mais baixos para quem trabalha a terra, etc.
1 NT: Ciclo de debates organizado pela cooperativa El Pa Sencer, em colaboração com a Revista SABC, entre maio e junho de 2025. As gravações das quatro sessões de debate estão disponíveis no canal Vimeo da Revista SABC (ver links no final do texto).
2 NT: Experiência pedagógica da “Institución Libre de Enseñanza”, criada em Espanha em 1876, com base numa renovação educativa, cultural e social.
3 NT: “Plantação” refere-se aqui ao termo cunhado em inglês de “plantation”, isto é, o sistema de exploração humana e agrícola criado e implementado pelos países colonizadores, como Portugal, Espanha e Reino Unido, primeiro nos países colonizados no continente americano e, posteriormente, nos continentes africano e asiático. Este sistema ou regime assenta na produção de monocultura para exportação e em trabalho escravo.
Como pudemos ouvir no ciclo de webinários “Os direitos básicos fora do capitalismo“1, o que acontece com a alimentação quando fica submetida a esta ideia de lucro é idêntico ao que acontece com outras necessidades básicas também soterradas sob o mesmo padrão. Setores como o energético ou o da habitação acabaram por ser controlados por oligopólios e fundos de investimento, e o mesmo sucede com o setor alimentar. O salário que muitas pessoas recebem é totalmente insuficiente para encontrar uma casa digna onde habitar e poder pagar as despesas energéticas para aquecê-la, assim como não permite adquirir um cabaz básico e suficiente de alimentos de boa qualidade e culturalmente apropriado. É uma espiral de exploração e precariedade. E para a romper, as iniciativas que surgem em qualquer destes setores – como as comunidades energéticas, as cooperativas de habitação ou as cooperativas de consumo – são importantes para demonstrar outras formas de fazer, mas não conseguem sequer incomodar a medula central do sistema capitalista.
Em contrapartida, chama a atenção que, nas sociedades do bem-estar, esta lógica não se aplique a outras necessidades – a educação ou a saúde. Uma longa história de iniciativas populares de apoio mútuo e de visão comunitária (as mútuas, as casas de saúde e beneficência, as “escolas de livre ensino”2) e a sua reivindicação, foram essenciais para que hoje sejam consideradas “direitos básicos” e a sua satisfação esteja garantida pelo setor público no Estado espanhol.
Profanar a alimentação
O investigador Horacio Machado afirma que a raiz da crise civilizatória que atravessamos é o «regime da plantação3». Nessa rutura, onde se passa do policultivo ao monocultivo, da agricultura (cultura que nasce da terra) à “mineração” agrária, é onde se gera verdadeiramente a civilização colonial e o capitalismo.
Como explica a bióloga Lynn Margulis, não somos seres vivos e sim seres conviventes: precisamos de outros seres para conviver.
“Somos uma comunidade que conflui para produzir a sua própria energia, o seu próprio alimento, numa relação de simbiose com a terra”. E, como parte dessa relação simbiótica, estamos interligadas ao tecido da vida nos circuitos materiais e espirituais pelos quais flui a energia vital que sustém a matéria orgânica.
“A transformação fundamental ocorre na profanação da comida: converter o alimento numa mercadoria é uma profanação do sistema de vida Terra do qual formamos parte», afirmou na sua intervenção na terceira sessão do ciclo.”
Um assunto público
De facto, nos nossos territórios, em diferentes momentos históricos, a alimentação também teve um tratamento público regulado pelas administrações. Talvez o exemplo mais paradigmático tenha sido os quinhentos anos – entre o século XII e o século XVIII – nos quais, na maioria das cidades da Europa, “gerir a alimentação da população foi um dever assumido pelos municípios”, como explicou Mercè Renom a partir dos seus estudos centrados na cidade de Barcelona. E a questão é que, tanto nas aldeias como nas cidades, ainda detetamos alguns elementos e figuras que chegaram até ao nosso tempo: edifícios de antigos celeiros reconvertidos para outros usos, matadouros, peixarias ou talhos municipais, ou os próprios mercados municipais, ainda em funcionamento. Com estas infraestruturas e com a capacidade de legislar em questões alimentares, os municípios e os seus governantes regulavam questões críticas como os preços, favoreceriam a chegada de alimentos do campo à cidade ou, inclusive, podiam impor tarifas para privilegiar o consumo local.
Evidentemente, as decisões tomadas não eram democráticas e nem sempre (eram) justas, mas o controlo mais próximo que o povo exercia nestas gestões aproximava-se do verdadeiro significado do público, cuja raiz etimológica nos relembra que falamos de “assuntos que dizem respeito ao povo”.

Ecomercado de La Ilustración, Universidad Pablo de Olavide, Sevilha
Intervenções parciais no sistema
Mas ainda devíamos retroceder mais no tempo ou mudarmos de lugar para detetar outros modelos económicos completamente diferentes ao que hoje é imposto. As chamadas economias camponesas e comunitárias, ainda que não igualitárias, sustinham-se num conjunto de valores que hoje reconhecemos quando falamos de projetos comunitários, e exprimiam uma forma de pensar em coletivo, em oposição ao individualismo e à competitividade aos que nos conduz inexoravelmente qualquer proposta mercantilizada.
Inspiradas por estes cânones, encontramos muitas das alternativas à mercantilização capitalista de direitos básicos, como as cooperativas de consumo em toda a sua diversidade, que se veem, contudo, obrigadas a conviver nos mercados convencionais com os grandes impérios da distribuição, com os quais é muito complicado competir. Além disso, o objetivo de garantir preços justos para as produtoras faz com que algumas destas propostas não possam chegar às classes populares. Todas estas iniciativas, tão valiosas e inspiradoras, acabam por ter um impacto muito limitado.
Macela, Celina da Piedade
As compras públicas que a administração leva a cabo para a distribuição de alimentos nas cantinas escolares, hospitais ou centros de dia, demonstram que, se existir vontade política, podem ser articulados sistemas alimentares à margem dos grandes mercados, mesmo que atinjam apenas uma pequena parte da população. Na maior parte dos casos, estes sistemas públicos têm muito para melhorar, já que, por exemplo, costumam priorizar a melhor oferta económica, apoiando, assim, produções alimentares industriais de questionável qualidade que, pelos seus reduzidos preços e a sua capacidade administrativa, são escolhidas em detrimento das produções camponesas.
Da mesma forma, também poderíamos dizer que, através de subsídios como os fundos da Política Agrícola Comum (PAC), os governos europeus dispõem de instrumentos políticos para intervir no sistema alimentar. No entanto, temos visto nestas décadas como esta intervenção acabou por se centrar precisamente na consolidação da agricultura dos grandes latifundiários, controlada pelo e para o rendimento do capital.
Caixas alimentares comunitárias
Podemos aspirar a sistemas alimentares desmercantilizados que devolvam à comida o valor sagrado que nunca devia ter perdido? Hoje em dia, existem mecanismos democráticos e populares que permitam levantar de baixo para cima um sistema alimentar para toda a população, baseado nas produções camponesas? Reaprendendo a linguagem, podemos conjugar juntas as palavras comum, público e cooperativo?
Este é o espírito que encontramos ao nos aproximarmos da proposta francesa da Segurança Social da Alimentação (SSA). David Fimat, que participa na experiência piloto da Caisse commune de l’alimentation, em Gironde, explica que a questão central passa pela criação das caixas comunitárias.
Segundo esta ideia, as experiências piloto de SSA conformam-se à volta de um grupo de pessoas – que podiam ser o reflexo de uma sociedade a pequena escala – que decide socializar a sua alimentação para que ninguém fique sem alimentos e para garantir a vida do campesinato. Para isso, tendo como exemplo o funcionamento dos sistemas públicos de saúde ou educação, enchem uma caixa comum a partir das contribuições monetárias de cada pessoa, em função da sua realidade económica (umas mais, outras menos, como acontece com as contribuições para a segurança social). A esta caixa soma-se também a contribuição de alguns órgãos de administração pública comprometidos com o projeto e as contribuições de algumas empresas locas, não só para aumentar os recursos da caixa, mas sobretudo para demonstrar a importância do próprio povo recuperar o poder de decisão sobre como gerir os recursos públicos, fruto de outras tributações como os impostos a empresas, o IVA, etc.

A venda direta assegura preços justos, relações de confiança e legumes de temporada.
Uma vez alcançado este primeiro objetivo de uma caixa comunitária – não isento de uma mudança de mentalidade -, o seguinte passo é co-decidir a sua gestão. Em assembleia, esta pequena comunidade deve tomar várias decisões. Em primeiro lugar, decidir a quantia económica e igualitária que cada pessoa irá receber do total angariado, num exercício de redistribuição da riqueza. Nos modelos teóricos desenhados pelos coletivos de apoio à SSA, o valor orientativo é de 150€ por mês por pessoa adulta, incorporados a um cartão que chamam Vitale.
Além disso, as próprias pessoas que fazem parte da caixa têm o direito de, democraticamente, chegar a um acordo sobre onde adquirir os alimentos, pagando-os com a quantia no cartão. Segundo David, “acaba por ser, como acontece com os médicos da Segurança Social, o estabelecer um acordo com os profissionais, agricultores e agricultoras, que nos abastecem de alimentos”. Ou seja, constrói-se um pequeno sistema social que apoia um modelo de produção e comercialização, e consensualiza que preços pagar para valorizar a sua dedicação como deve ser. E não é difícil escolher, dado que na maioria das cidades existem experiências de economia social e solidária que, ao se integrarem neste esquema, assumem uma importância fundamental: os projetos de “agricultura apoiada pela comunidade”4, os mercados camponeses, as cooperativas de consumo, os supermercados de base cooperativa e sem ânimo de lucro, etc.
Enquanto se estão a desenvolver as primeiras experiências – contava David -, vão sendo detetadas as barreiras que permitem pensar melhor todo o funcionamento da proposta, especialmente como incorporar variações em função de questões conjunturais, sociais ou territoriais.
4 NT: Agricultura apoiada pela comunidade (CSA em inglês), Associação de Manutenção da Agricultura Camponesa (AMAP em francês) são iniciativas idealizadas e postas em prática, em diferentes países, unindo pessoas produtoras e consumidoras na produção de alimento, partilhando riscos e responsabilidades. Este tipo de iniciativa visa, por um lado, garantir o rendimento dos e das agricultoras, e, por outro, aprofundar as relações de produção-consumo, tornando as pessoas consumidoras parte do processo produtivo, indo além do mero pagamento dos produtos.

Loja da Associação La Borraja, Sanlúcar de Barrameda, Cádiz
Neste ponto, pode visualizar-se um caminho de duas vias. Por um lado, na medida em que as experiências locais funcionam, dever-se-ia procurar apoio das administrações locais para ativar este sistema. Não para nele intervirem, mas para legitimá-lo e apoiar a sua multiplicação. Como diriam os e as zapatistas: o povo manda e o governo obedece. Podemos imaginar, a médio prazo, uma rede de municípios que facilite o espaço e os instrumentos para que a população organizada desenvolva políticas públicas alimentares e agroecológicas, baseadas nos princípios da solidariedade e da soberania alimentar?
Por outro lado, a ideia de um sistema alimentar público, comunitário e cooperativo, desprovido de ânimo de lucro, parece reunir todos os elementos para impugnar o modelo mercantilista e capitalista em relação à alimentação. Na medida em que a sociedade organizada amplifique e divulgue esta proposta – junto de quem defende a habitação, os cuidados ou a energia pública -, poderá fazer tremer o modelo alimentar capitalista.
Para saber mais
Gravações das quatro sessões de debate a que o texto se refere estão disponíveis no canal Vimeo da Revista SABC:
1. La memoria. No todo fue neoliberalismo.
2. La actualidad. Las demandas de los movimientos por la vivienda, los cuidados y la energía.
3. El alimento como vínculo con la tierra
4. Propuestas para desmercantilizar la alimentación
Sobre a Segurança Social Alimentar:
Collectif pour une Sécurité sociale de l’alimentation
Paula Ferreira, Pour une Sécurité Sociale de l’Alimentation
Stéphanie Chiron e Patricia Dopazo, El futuro de la alimentación es la democracia – El proyecto de Seguridad Social de la Alimentación en Francia, SABC
