Acordo UE-MERCOSUL do ponto de vista da CNA e Via Campesina

Por rendimentos dignos para os agricultores e pela regulação dos mercados de produtos agroalimentares

Vítor Rodrigues, Membro da Direção da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e do Comité Coordenador da Coordenadora Europeia da Via Campesina (ECVC). Representa a ECVC no Conselho Europeu para a Agricultura e Alimentação (EBAF). Fotos: CNA

Tempo aproximado de leitura: 9 minutos

Origens e objetivos

Depois de 25 anos de negociações, a União Europeia (UE) e o MERCOSUL (bloco comercial formado por Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela, esta última suspensa na organização) anunciaram, em dezembro de 2024, a conclusão de negociações para um acordo comercial.

A UE justifica este acordo com a dimensão do mercado do MERCOSUL (273 milhões de pessoas1 e 2,2 biliões de euros de produto interno bruto (PIB) conjunto), e também com a intensidade das relações comerciais já existentes (84 mil milhões de euros em exportações desde a UE), que envolvem mais de 30 mil pequenas e médias empresas do espaço europeu.

Os principais objetivos da UE passam por: 1) diminuir ou eliminar as tarifas de importação aplicadas pelos países do MERCOSUL quanto à entrada de produtos finais, sobretudo automóveis, maquinaria, farmacêuticos, têxteis e vestuário, e alguns produtos alimentares; 2) diminuir ou eliminar as tarifas de importação impostas pela UE na compra de matérias-primas essenciais oriundas do MERSCOSUL (terras e metais raros, p.e.)2. Segundo a UE, o acordo vai também permitir aumentar o comércio de serviços, telecomunicações, transportes e serviços financeiros.

Da parte dos países do MERCOSUL, estes esperam também beneficiar da diminuição ou eliminação de tarifas de importação por parte da UE de produtos agroalimentares.

No caso dos produtos agroalimentares, a UE aposta no levantamento de tarifas à importação, por parte dos países do MERCOSUL, no azeite, malte, vinhos, bebidas espirituosas e chocolates. No caso dos queijos, e outros derivados lácteos, o acordo prevê o gradual levantamento de tarifas à importação, até determinadas quotas. É importante referir que as quotas com isenção de tarifas não significam tectos à importação.

Já quanto às importações de produtos oriundos do MERCOSUL, o acordo estabelece quotas e levantamento progressivo de tarifas para carne de bovino, aves, suínos, açúcar, etanol, mel, arroz, milho e sorgo3.

1 EU – União Europeia, 2024: EU-MERCOSUR Partnership Agreement: Key Facts.
2 EU, 2024: EU-MERCOSUR Partnership Agreement: Enhancing Trade and Investment in Critical Raw Materials. Disponível em: ver nota 1.
3 EU, 2024: EU-MERCOSUR Partnership Agreement: Opening Opportunities for European Farmers. Disponível em: ver nota 1.

Outros elementos do acordo

O demorado processo de negociação procurou dar resposta às questões que mais críticas levantaram nos últimos anos. O acordo inclui várias cláusulas e instrumentos, tais como: 1) suspensão do acordo, caso algum país saia do Acordo de Paris relativo às alterações climáticas, ou deixe de atuar de boa-fé; 2) compromisso de parar a deflorestação no MERCOSUL, provocada por certos produtos agroalimentares, a partir de 2030; 3) mecanismo de reequilíbrio no caso de uma das partes considerar que a outra anula ou desequilibra substancialmente os termos do acordo; 4) todos os produtos comercializados na UE têm de respeitar as mesmas regras quanto à sua sustentabilidade, sanidade e fitossanidade; 5) criado um mecanismo de salvaguarda de 1000 milhões de euros, para compensar os agricultores de “eventuais” consequências negativas.

A La Via Campesina (LVC), organização mundial de camponeses/as e trabalhadores/as da terra, na qual se integra a Coordenadora Europeia Via Campesina (ECVC), de que a CNA faz parte, aponta para várias e graves insuficiências dos mecanismos associados ao acordo. A saber:

– O mecanismo de salvaguarda é, na prática, o reconhecimento de que os agricultores podem sofrer consequências negativas em termos dos seus preços e rentabilidade, pondo em particular perigo os pequenos e médios agricultores (PMA). Ora, estas consequências só são anuladas com o assegurar de preços justos que cubram, pelo menos, os custos de produção;

– As consequências da deflorestação não podem ficar apenas para o pós-2030. Até lá, a manter-se o ritmo atual, vastas áreas florestais dos países do MERCOSUL vão continuar a ser destruídas, o que é potenciado pelo acordo. Por outro lado, este compromisso não abrange determinados produtos que fazem parte do acordo.

– Também de difícil fiscalização são as condições de sustentabilidade social e fito-sanitária da produção agrícola no MERCOSUL. Isso exigiria mecanismos de verificação in loco, que o acordo não está em condições de assegurar.

Um processo opaco e pouco democrático

O processo de negociação do acordo foi pouco transparente, e a sua adoção afigura-se pouco democrática.

Antes de mais, é necessário ter em conta qual o processo de aprovação previsto na UE para este tipo de acordos. Inicialmente, tratava-se de um “acordo de associação”, o que implicaria a ratificação pelos parlamentos dos Estados-Membros (EM). Contudo, foi revelado que vai tratar-se de um “acordo de parceria”, o que dispensa essa ratificação.

Se se tratar de um acordo comercial de caráter misto, então é necessário obter a unanimidade no Conselho Europeu, e a ratificação pelo Parlamento Europeu.

No entanto, vários países (França, Irlanda e Polónia, p.e.) têm-se manifestado contrários à adoção deste acordo, ou manifestado grandes reservas. Por isso, o processo de aprovação pode passar pela separação da componente comercial das outras componentes do acordo. Isto faria com que fosse possível adotá-lo apenas com maioria qualificada de EM. Portugal tem uma posição favorável.

Consequências para os pequenos e médios agricultores

4 ECVC – Coordenadora Europeia Via Campesina, 2023: EU-MERCOSUR FTA: a political agreement at the expense of farmers? (25-05-2025).
5 ECVC – Coordenadora Europeia Via Campesina, 2024: ECVC, FUGEA and civil society demand na end to the EU-Mercosur FTA in Brussels (25-05-2025).

A LVC, a ECVC e a CNA têm criticado duramente a adoção deste acordo comercial, que trata os produtos agrícolas como meros commodities, num paradigma obsoleto que desconsidera a alimentação como um direito humano, a soberania alimentar, ou o direito dos agricultores a rendimentos dignos. Desconsidera ainda o contexto de necessidade de combater as alterações climáticas e a perda de biodiversidade 4 5.

O aumento das trocas comerciais a preços mais baixos do que os praticados atualmente, não pode deixar de implicar mais um passo no sentido da especialização produtiva, o que sempre favorece o grande agronegócio. De igual modo, o previsível aumento de exportações a preços mais baixos vai fazer expandir a agricultura mais industrializada nos países do MERCOSUL, e esmagar os PMA nos dois lados do Atlântico.

Na realidade, com este acordo, a UE sacrifica os seus pequenos médios agricultores e agricultoras para obter vantagens geostratégicas no campo dos produtos industriais e matérias-primas.

Manifestação de agricultores/as, em Vila Real, fevereiro 2024.

Alternativa e medidas necessárias

A LVC, a ECVC e a CNA vêm defendendo há muito a retirada da agricultura dos chamados “acordos de livre comércio”, por representarem uma ameaça para a pequena e média agricultura e para a soberania alimentar.

Para tal, têm-se desenvolvido várias ações de âmbito nacional, europeu ou mundial, como a manifestação em Bruxelas em novembro de 2024.

Continuamos a defender a fixação de preços mínimos de entrada para produtos importados, e a proibição da compra de produtos agroalimentares abaixo dos custos de produção, atacando a ditadura da grande distribuição e do agronegócio. Para o efeito, é urgente e prioritário rever a Diretiva da UE das Práticas Comerciais Desleais, e rever a legislação nacional para incluir este preceito da mais elementar justiça.

A regulação do mercado, garantindo a estabilidade de preços e stocks, e a dignidade dos PMA, incentivando a instalação de mais jovens agricultores, a difusão das práticas agroecológicas, a implementação de compras públicas de produções locais, são elementos fundamentais de um outro paradigma de agricultura, voltado para a soberania alimentar e para a viabilidade dos territórios e sócio-economias rurais. Estes são objetivos incompatíveis com um comércio mundial desregulado e assente em interesses opostos aos dos pequenos e médios agricultores.

Manifestação da ECVC, em Bruxelas, novembro de 2024

Para saber mais