Apoderar-se dos meios de computação – como os movimentos populares podem derrubar os monopólios das Big Tech
Entrevista do Transnational Institute a Cory Doctorow. Tradução: Oficina Global
Publicada originalmente em fevereiro de 2023 aqui (em inglês). Pode ouvir a versão integral aqui.
Tempo aproximado de leitura: 35 minutos
Cory Doctorow é um escritor prolífico e um brilhante romancista de ficção científica, jornalista e ativista tecnológico. É consultor especial da Electronic Frontier Foundation, um grupo sem fins lucrativos de liberdades civis que defende a liberdade na legislação, política, normas e tratados tecnológicos. O seu livro mais recente1, Chokepoint Capitalism (em co-autoria com Rebecca Giblin), é uma poderosa exposição de como os monopólios tecnológicos sufocaram os mercados de trabalho criativos e como os movimentos podem reagir. Nick Buxton, editor do relatório State of Power do TNI e Shaun Matsheza, apresentador do podcast State of Power, conversaram com Cory na sequência das inundações na sua cidade natal, Burbank, na Califórnia. Este é um excerto editado da entrevista.
Cory Doctorow. Créditos: Jonathan Worth.
Comecemos por uma grande questão em aberto que está no centro do relatório State of Power do TNI: Quem detém o poder digital atualmente?
Essa é uma excelente pergunta. Como Tom Eastman, um programador de software da Nova Zelândia, observou: a Web transformou-se em cinco sites gigantes cheios de capturas de ecrã dos outros quatro. Um pequeno número de empresas extremamente poderosas, nomeadamente a Google, a Amazon, o Facebook, a Apple e a Microsoft, têm aquilo a que os reguladores europeus chamam poder de guardião – o direito de decidir quem pode falar, quem pode contactar quem, como funciona. Esta situação afasta-se claramente da tónica inicial que deu origem a estas empresas, que se caracterizava pela ideia de que a Internet seria um novo tipo de rede em que qualquer pessoa que quisesse falar com outra pessoa o poderia fazer sem a intervenção de terceiros. Atualmente, temos uma série de “pontos de estrangulamento” em que o discurso ou atividades semelhantes, como a angariação de fundos, podem ser controlados por uma de um número muito reduzido de empresas.
E é importante notar que a razão pela qual essas empresas foram autorizadas a crescer tanto como cresceram, a razão pela qual os reguladores estatais fecharam os olhos, é porque os Estados veem essas empresas como potenciais substitutos para os seus próprios exercícios de poder. É altamente improvável, por exemplo, que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (National Security Agency, NSA) pudesse ter obtido autoridade reguladora ou nos tivesse convencido a transportar balizas que transmitem a nossa localização em todo o mundo. Ao permitir que as empresas o façam, ao não intervir nem exigir regulamentação, o governo dos Estados Unidos da América (EUA) concretizou um futuro em que a NSA não precisa de nos pôr todos/as sob escuta. Pode simplesmente pedir ao Facebook, à Google ou à Apple informações que, de outra forma, não conseguiria obter. Por isso, isto tem de ser entendido como uma parceria público-privada.
1 NT: Tratava-se da última obra de não ficção à data da entrevista. Entretanto, Cory Doctorow publicou The Internet Con: How to Seize the Means of Computation, no final de 2023.
2 NT: Os mandados de busca por geolocalização permitem que as autoridades solicitem informações de localização dentro de uma determinada área e período de tempo, com o objetivo de identificar suspeitos.
3 NT: O autor refere-se ao ataque ao Capitólio a 6 de janeiro de 2021.
Como ocorre esta interação de poder entre o Estado e as empresas?
Bem, dou-vos um exemplo muito claro. A Google recolhe os seus dados de localização de uma forma que é claramente enganadora. Se desativar o rastreio de localização no seu dispositivo Android ou iOS, este não deixará de rastrear a sua localização. Há pelo menos 12 locais diferentes onde é necessário desativar o rastreio da localização para o parar efetivamente. E, mesmo assim, não é claro se o estão realmente a parar. Até os funcionários da Google se queixam de que não conseguem descobrir como desativar o rastreio de localização. Ora, em qualquer mundo sensato, esta seria uma atividade proibida. A Secção 5 da Lei da Comissão Federal do Comércio (Federal Trade Commission Act) dá à agência uma ampla margem de manobra para intervir na prevenção de práticas “desleais e enganosas”. É difícil defender a ideia de que, se clicarmos no botão “Não me rastreie” e continuarmos a ser rastreados, essa prática é justa e não enganosa. Este é claramente o tipo de coisa que a lei proíbe. E, no entanto, os governos não tomaram qualquer medida. Não temos visto legislação ou regulamentação que impeça esta prática.
Ao mesmo tempo, assistimos a uma utilização crescente dos dados de localização da Google e daquilo a que o Estado chama mandados de “geofence”2 ou mandados inversos. É aqui que uma autoridade judiciária se dirige à Google, por vezes mas nem sempre com um mandado, e descreve um local – uma caixa de informação, rua por rua – e um período de tempo, digamos das 13h às 16h, e exige ter conhecimento de todas as pessoas que se encontram nessa ‘caixa’. Este método foi amplamente utilizado contra os manifestantes do Black Lives Matter e depois contra os manifestantes de 6 de janeiro3. Vemos aqui um incentivo perverso, que faz com que o Estado não impeça esta conduta enganosa e injusta.
Mas é uma conduta muito perigosa, porque uma empresa tão grande como a Google irá ter sempre ameaças internas, como funcionários que aceitam subornos de outras pessoas. Sabe-se que o Twitter, por exemplo, teve operadores sauditas que se infiltraram na empresa e que depois roubaram dados de utilizadores sauditas e os forneceram aos serviços secretos da Arábia Saudita para que estes pudessem vigiar estes ativistas e impor-lhes represálias, nas formas mais violentas e horríveis que se possa imaginar.
Há também o risco de que os dados recolhidos acabem por ser divulgados e possam ser obtidos por criminosos. Uma regulamentação sólida implicaria a eliminação desta conduta. A única forma de compreender porque é que isto continua é porque há demasiadas partes interessadas no governo que dependem destas bases de dados, muito perigosas e enganadoras, para facilitar o seu trabalho. Por isso, não só não apoiam os esforços para controlar a Google e outras empresas, como até se opõem a isso, tanto publicamente como nos bastidores. É muito difícil, como Upton Sinclair observou uma vez, fazer com que alguém compreenda algo quando o seu salário depende do facto de não o compreender.
Quais são as implicações desta relação Estado-empresa a nível global?
Entre meados da década de 2000 e o início da década de 2010, assistimos ao estabelecimento de escritórios locais das empresas de tecnologia em países onde o Estado de direito era muito fraco. Houve um ponto de viragem com a entrada e saída da Google da China, e depois vimos muitas empresas a estabelecerem-se na Rússia após a sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC). Vimos o Twitter abrir um escritório na Turquia. E tudo isto foi importante porque colocou pessoas em perigo. Deu aos governos desses países o poder de, literalmente, colocarem as mãos em pessoas importantes dentro dessa estrutura empresarial e, assim, coagirem a cooperação dessas empresas de uma forma que seria muito mais difícil se, digamos, Erdogan quisesse agitar o seu sabre contra os funcionários da Google na Califórnia. Se o administrador da Google mais próximo estivesse a um oceano e um continente de distância, a Google faria cálculos muito diferentes sobre a sua participação na vigilância turca do que quando há pessoas com quem se preocupam que podem ser fisicamente detidas e atiradas para a prisão.
Há uma história semelhante de proliferação de grandes firewalls4, primeiro na China e depois como produto chave-na-mão [sistemas instalados e prontos a usar] noutros locais, à medida que as empresas chinesas e ocidentais vendiam as suas soluções prontas para uso a governos com pouca capacidade técnica.
Isto levou os governos a dizerem às empresas: a menos que coloquem alguém neste país e armazenem os vossos dados aqui, serão bloqueadas na nossa fronteira. E citam as regras de localização de dados da União Europeia (UE) que dizem que as empresas americanas que operam na UE não podem transferir os dados dos europeus para os EUA, onde a NSA pode ter acesso aos mesmos. Trata-se de uma regulamentação perfeitamente sensata da UE. Mas, dependendo da natureza do governo, pode acontecer que tenham ainda menos respeito pela privacidade do que a NSA, ou que sejam ainda mais aptos que os EUA a transformar os dados dos seus próprios cidadãos em armas. Estou a pensar, por exemplo, na forma como o Estado etíope utilizou ferramentas de vigilância em massa desses sistemas prontos a usar de empresas ocidentais para prender, torturar e assassinar, em alguns casos, figuras da oposição democrática. Assim, para compreender como é que os dados estão ao alcance das autoridades etíopes, é preciso compreender a interação entre a localização dos dados, a tecnologia de firewall nacional e o imperativo das empresas em estabelecer escritórios de vendas em todo o mundo para maximizarem os seus lucros.
E como é que a Inteligência Artificial ou a machine learning5 se enquadram nesse contexto?
Não gosto do termo inteligência artificial. Não é nem artificial nem inteligente. Nem sequer gosto muito do termo machine learning. Mas chamar-lhe “inferência estatística” carece de um certo je ne sais quoi. Por isso, vamos chamar-lhe machine learning, que é entendida como um julgamento automatizado a uma escala que os seres humanos não conseguiriam atingir. Assim, a capacidade de um Estado de identificar tudo o que tem a forma de um rosto numa multidão, consultando uma base de dados de todos os rostos que conhecemos, seria limitada pelo número de pessoas que possui. A antiga Alemanha Oriental tinha uma pessoa em 60 a trabalhar, de alguma forma, para os serviços de secretos, mas não poderia aproximar-se das atuais escalas de vigilância.
Mas isso levanta dois problemas importantes. O primeiro é que pode funcionar, e o segundo é que pode não funcionar. Se funcionar, é uma inteligência que ultrapassa os sonhos de qualquer ditador na História. Quanto mais fácil for para um governo impedir qualquer oposição, menos terá de se preocupar em governar bem para impedir que a oposição se forme. Quanto mais barato for construir prisões, menos hospitais, estradas e escolas será necessário construir, menos terá de governar bem e mais poderá governar no interesse dos poderosos. Por isso, quando funciona, é mau.
E quando falha, é mau porque, por definição, está a funcionar a uma escala demasiado rápida para ter um humano no circuito. Se tivermos milhões de discernimentos a serem feitos a cada segundo, nenhum humano poderia supervisioná-los, e se houver apenas uma pequena quantidade de erro, digamos que seja 1%, bem, 1% de um milhão são 10.000 erros por segundo.
4 NT: firewall é um sistema de segurança de redes informáticas.
5 NT: machine learning refere-se à capacidade de aprendizagem automática pela inteligência artificial.
Vista aérea do campus principal da Google em Mountain View, Califórnia (EUA). Créditos: Austin McKinley
6NT: ransomware é um software malicioso usado para extorsão por meio de sequestro de dados digitais.
Então, alguma coisa mudou desde as revelações de Snowden?
Penso que temos uma sensação crescente de que está a haver vigilância. Não é tão controverso quanto dizer que estamos sob vigilância em massa e que os nossos dispositivos digitais estão a ser subornados pelo Estado. Criou-se espaço para as empresas e para as organizações sem fins lucrativos criarem e manterem tecnologias resistentes à vigilância. Vemos o aumento da utilização de tecnologias como o Signal, bem como a integração de tecnologia anti-vigilância no WhatsApp, por parte de grandes empresas como o Facebook.
E dentro da indústria há um sentimento crescente de que esta vigilância em massa é má para si, porque o mecanismo central utilizado pelas agências de vigilância governamentais consiste em identificar defeitos na programação, em vez de relatar esses defeitos aos fabricantes, acumulá-los e depois utilizá-los para atacar adversários da agência. Assim, a NSA descobre um erro no Windows e, em vez de o comunicar à Microsoft, utiliza-o para hackear pessoas que pensa serem terroristas ou espiões ou simplesmente adversários dos interesses nacionais dos EUA.
E o problema é que há uma hipótese em cinco, por ano, de um determinado defeito ser redescoberto de forma independente e utilizado por criminosos ou por um governo hostil. O que significa que o governo dos EUA expôs as suas partes interessadas, empresas e indivíduos a um risco gigantesco ao descobrir esses defeitos e ao não agir rapidamente para colmatar essas lacunas. E esse risco está bem patente na atual epidemia de ransomware6, em que oleodutos, hospitais, agências governamentais e cidades inteiras estão a ser tomadas por pequenos criminosos.
É este o tipo de reação à vigilância em massa a que temos assistido e que desencadeou um movimento anti-vigilância que está a ganhar força, mesmo que não tenha ido tão longe como seria de esperar, dado o sacrifício que pessoas como Ed Snowden fizeram.
Tudo o que não pode continuar para sempre irá eventualmente acabar. E a vigilância em massa é tão tóxica para o nosso discurso, tão perigosa e imprudente, que não pode continuar para sempre. Por isso, a questão não é se vai acabar, mas sim quanto perigo e danos resultarão dela antes de acabarmos com ela. E episódios como as revelações de Snowden farão com que esse fim se aproxime.
Voltemos às empresas que são responsáveis por esta tecnologia. Como caracterizaria o problema das Big Tech? Estamos a falar de algumas empresas ou indivíduos que têm demasiado poder, como Elon Musk ou Mark Zuckerberg? Ou será que o problema está nos seus modelos de negócio, a vigilância em massa? Ou será que as Big Tech estão a funcionar dentro de uma estrutura muito mais ampla que é problemática?
A primeira coisa que precisamos de perceber sobre as Big Tech é que não são muito boas a inovar. Veja-se o caso da Google. Esta é uma empresa que criou três produtos de sucesso. Criaram um motor de busca muito bom há 30 anos, um clone muito bom do Hotmail e uma espécie de browser um pouco assustador. Tudo o resto que fizeram internamente falhou. E todos os outros sucessos foram alcançados comprando outras empresas. Quando o Google Video falhou, compraram o YouTube. A sua tecnologia de publicidade, a sua tecnologia móvel, as suas ferramentas de gestão de servidores, as suas ferramentas de atendimento ao cliente, com exceção destas três ferramentas, todas as outras componentes da empresa Google foram compradas a outros.
Historicamente, os reguladores antitrust teriam impedido estas fusões e aquisições anti-concorrenciais e teriam forçado estas empresas ou a descobrir como inovar por si próprias ou a sair do caminho quando pessoas com ideias melhores as ultrapassam. A Google não é a única: a Apple, o Facebook e a Microsoft são fábricas “de compra de empresas” que fingem ser fábricas de “geração de ideias”. Congelámos a tecnologia no tempo, ao permitir que as empresas que têm acesso aos mercados de capitais decidam como vai ser o futuro da tecnologia. É uma economia planeada, mas planeada por uns quantos atores financeiros muito poderosos e pelos executivos de algumas grandes empresas, e não por legisladores ou por um governo democraticamente responsabilizável, ou até por um autocrata, ou pelo menos por um autocrata no poder. Atualmente, temos autocratas nas salas das Direções.
E quando percebes que a principal vantagem destas empresas é poderem aceder aos mercados de capitais, e comprar e extinguir potenciais rivais antes que estes se tornem relevantes, então começamos a perceber onde reside o seu poder. É um erro acreditar na propaganda da Google e do Facebook, que dizem aos potenciais anunciantes ‘construímos um raio de controlo mental que podemos utilizar para vender qualquer coisa a qualquer pessoa’, desde que pague um prémio. Desde Rasputin, ou até antes dele, há quem afirme ter construído mecanismos de controlo da mente, e todos eles estavam a mentir. As suas afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias, e as provas são muito escassas. Em vez disso, o que vemos são empresas que detêm um monopólio. O Facebook pode chegar a 3 mil milhões de pessoas porque as espia a toda a hora e porque é basicamente impossível usar a Internet sem usar o Facebook. Mesmo que não seja um usuário do Facebook, todas as aplicações que utiliza muito provavelmente foram construídas com ferramentas do Facebook, o que significa que este está sempre a recolher dados sobre si. O mesmo acontece com a Google. Não foi o modelo de negócio baseado na vigilância que deu poder a estas empresas. Foi o seu poder que lhes permitiu adotar um modelo de negócio de vigilância que teria sido proibido por qualquer sistema de regulamentação sensato, ou que teria sido minado pelos concorrentes.
Por exemplo, muitas pessoas gostam de ter um ótimo motor de busca, mas muito poucas se apercebem de como a Google nos espia. Historicamente, se uma empresa cujos produtos digitais fazem três coisas de que os seus clientes gostam e uma coisa que desprezam, alguém fará um módulo pós-venda que lhe dará todas as coisas de que gosta e nenhuma das coisas que não gosta. No entanto, sempre que uma empresa tenta construir algo deste género, ou é comprada pela Google, ou pelo Facebook, ou pela Apple, ou por uma das outras grandes empresas, ou é processada até ao esquecimento por ter um comportamento muito semelhante ao que estas empresas tiveram quando estavam a crescer. Quando o fazem, é um processo legítimo. Quando o fazemos, é um roubo.
As Big Tech cresceram ao engolir as pequenas empresas de tecnologia. Empresas compradas pela Meta (Facebook) 2007-2022. “A concorrência é para perdedores. Se pretende criar e capturar valor duradouro, procure construir um monopólio.” Peter Thiel, cofundador do PayPal, primeiro investidor externo do Facebook. Fonte: The GAFAM Empire.
E quanto àqueles que dizem que o que está em causa é o modelo de negócios de vigilância que empresas como a Google estão a adotar?
Não creio que esteja relacionado com o modelo de negócio. Existe esta ideia de que se não estamos a pagar pelo produto, nós somos o produto. Bem, a Apple lançou uma tecnologia anti-vigilância muito boa que impede o Facebook de o espiar. Mas acontece que, mesmo que ative as ferramentas “Não me espie” no seu dispositivo iOS, iPhone ou iPad, a Apple continua a espiá-lo. De forma enganosa, recolhe um conjunto de informações quase idêntico ao que o Facebook teria recolhido e utiliza-o para lhe direcionar anúncios. O maior acordo que a Apple faz todos os anos e que é negociado pessoalmente entre o executivo sénior da Apple, Tim Cook, e o executivo sénior da Google, Sundar Pichai, é o que torna o Google na ferramenta de pesquisa predefinida no iOS, o que significa que sempre que usa o seu iPhone, está a ser espiado pela Google.
Por isso, a ideia de que há uma empresa boa e uma empresa má, ou que o modelo de negócio da vigilância transforma os nerds bons e honestos em vilões maléficos, não resiste a um exame minucioso. As empresas tratam-nos de forma a conseguirem safar-se sempre. E se conseguirem encontrar uma forma de ganhar dinheiro tratando-nos como um produto, assim o farão. E se pensa que dar-lhes dinheiro vai fazê-las parar, é um idiota.
Cory, a tua é a primeira resposta um pouco encorajadora quando entendemos que o poder digital das Big Tech se baseia em mediocridades que, por acaso, obtêm um monopólio. Então, essencialmente, se formos capazes de quebrar o monopólio, talvez possamos retomar o seu poder?
Sim, acho que isso é verdade. O problema da teoria do raio de controlo da mente, que é avançada em livros como A Era do Capitalismo da Vigilância, de Shoshana Zuboff, é ser uma advogada do desespero. Há uma secção em que ela diz: “Bem, e a lei da concorrência? E se separássemos estas empresas e as tornássemos menos poderosas?” Ela argumenta que isso não as tornaria menos poderosas porque, agora que têm raios de controlo mental, mesmo que as tornemos novamente pequenas, elas continuarão a ter o controlo das mentes. E, em vez de haver um raio de controlo da mente a ser controlado por um super-vilão maléfico, existirão centenas de super-vilões maléficos, como bombas nucleares em malas a serem empunhadas por terroristas em vez da atual teoria dos jogos friamente racional jogada pelas superpotências.
Isso seria verdade se tivessem, de facto, construído super armas. Mas não construíram. Nem sequer são boas no seu trabalho. Estão sempre a piorar os seus produtos e cometem muitos erros terríveis. E, tal como muitas pessoas poderosas, podem falhar e, porque têm uma grande almofada – poder de mercado, reservas de capital, acesso aos mercados de capitais, aliados poderosos e agências governamentais e outras empresas que dependem de si para infra-estruturas e apoio – podem cometer todo o tipo de erros e ainda assim seguir em frente. Elon Musk é o exemplo de fracasso. Um homem que está tão isolado pela sua riqueza, pela sua sorte e pelo seu privilégio que, não importa quantas vezes faça asneira, ainda consegue cair de pé.
Onde é que a esquerda errou? Ambos atingimos a maioridade nos anos 1990, quando se sentia que a Internet era uma ferramenta emancipatória e que as forças progressistas de esquerda estavam na vanguarda, quer desafiando estruturas como a Organização Mundial do Comércio, quer derrubando governos não democráticos. Mas agora vivemos numa época em que as grandes empresas conseguiram zonas de controlo e em que o discurso na Internet é muito povoado por desinformação e é a extrema-direita que parece ter muito mais sucesso na utilização das tecnologias digitais. O que é que causou esta situação e quais são as lições a tirar?
A falha não foi ver o potencial libertador da tecnologia ou não ver o seu potencial para confiscar a liberdade e o poder, mas sim não entender o que aconteceu à lei da concorrência, e não apenas no campo da tecnologia, mas em todas as áreas do Direito, que começou com Ronald Reagan e se acelerou durante a era da tecnologia. Recorde-se que Reagan foi eleito no ano em que o computador Apple II Plus chegou às prateleiras. Assim, a economia neoliberal e o sector tecnológico não podem ser dissociados. Estão firmemente interpenetrados. Não percebemos que algo estruturalmente diferente estava a acontecer ao permitirmos que as empresas conduzissem os seus negócios, deixando-as comprar qualquer concorrente que se atravessasse no seu caminho, e permitindo que os mercados de capitais financiassem essas aquisições para criar estes monopólios, que alteraram o equilíbrio de forças.
A minha história pessoal é que me deram um Apple II Plus em 1979, pelo qual me apaixonei e tornei-me um miúdo obcecado por tecnologia. Naquela altura, as empresas que num dia eram gigantes, no outro estavam a desmoronar-se, com uma nova empresa ainda mais excitante a surgir atrás dela. E era fácil achar que esse era um carácter intrínseco da tecnologia. Em retrospetiva, foram os últimos dias de um mercado competitivo para a tecnologia. O Apple II Plus e os computadores pessoais foram possíveis graças à intervenção anti-monopólios na indústria dos semicondutores na década de 1970. O modem foi possível graças à dissolução da AT&T em 1982.
Como resultado, temos agora este mundo onde esse fomento e esse dinamismo acabaram. Vivemos num tempo ossificado. Uma época em que a tecnologia, o entretenimento e outros sectores se fundiram não só entre si, mas também com os militares e o Estado, de modo que temos apenas uma bola cada vez mais concentrada e densa de poder corporativo que está entrelaçada com o poder do Estado de uma forma muito difícil de desfazer.
Então, diria que o génio saiu da garrafa? Nos últimos anos, parece haver alguns movimentos no sentido da regulamentação, como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados na Europa, a Lei dos Mercados Digitais. Nos Estados Unidos, temos assistido a algumas discussões antitrust e, de um modo geral, as pessoas estão agora despertas para esta questão. Como vê estes esforços dos legisladores e a maior consciência pública?
Estamos a viver um momento extraordinário, um momento regulador, sobre as Big Tech e outros tipos de poder corporativo, que há muito devia ter acontecido e que há muito tempo que não acontecia. Penso que isso se deve a uma sensação crescente de que as Big Tech não são um fenómeno isolado, mas apenas uma expressão do fenómeno subjacente de um poder empresarial cada vez mais concentrado em todos os sectores. Por isso, quando dizemos que queremos que as Big Tech sejam domadas, estamos a participar num movimento que também diz que queremos que as Big Agriculture sejam domadas, as Big Oil, as Big Finance, as Big Logistics e todos os outros grandes sectores integrados e concentrados que prestam serviços cada vez piores, obtêm lucros cada vez maiores, infligem cada vez mais danos e enfrentam cada vez menos consequências.
Podemos também ter esperança na forma como a tecnologia digital é profundamente diferente e genuinamente excecional em relação a outros tipos de tecnologia, que é o facto de a tecnologia digital ser universal. Na verdade, só há um tipo de computador que sabemos construir. É a máquina completa de Turing von Neumann. Formalmente, trata-se de um computador que pode executar todos os programas que sabemos escrever, o que significa que, se houver um computador concebido para nos vigiar, há também um programa que pode ser executado nesse computador e que frustrará essa vigilância. Isto é muito diferente de outros tipos de tecnologia, porque estes programas podem ser infinitamente reproduzidos com um clique do rato e instalados em todo o mundo. Ora, isto significa, por um lado, que as organizações criminosas são capazes de explorar as tecnologias de todas as formas terríveis. Não existe um computador de hospital que só faça funcionar a máquina de raios X e não possa também executar ransomware. Mas isso significa que aquilo costumávamos chamar ‘hacktivismo’ e aquilo que se vem chamando simplesmente uma ‘boa política industrial’ – tal como contemplado em coisas como a Lei Europeia dos Mercados Digitais – tem o potencial de fazer pender a balança em que a infraestrutura destas grandes empresas e os Estados que as apoiam são subornados para apoiar as pessoas que se lhes opõem.
Motorista da Uber. Créditos: Noel Tock.
Então, o que é que acha que vai ser necessário para aproveitar ao máximo este momento? Como é que podemos dar o impulso necessário para que seja um verdadeiro ponto de viragem?
O ponto de viragem é talvez a forma errada de pensar sobre isto. Há uma coisa nas estatísticas chamada curva de crescimento recortada. Provavelmente já viu isto, em que há uma curva que sobe, atinge um pico, desce para um nível mais elevado do que estava antes, e depois sobe para um novo pico e depois para um nível mais elevado do que estava antes. Portanto, é uma espécie de crescimento pontuado.
E a melhor maneira para pensar sobre isso, em termos de suspeita do poder corporativo, é que os abusos corporativos – que inevitavelmente acontecerão como resultado da concentração de poder – irão gradualmente construir a sua própria oposição. Por exemplo, no mês passado, um milhão de passageiros ficaram retidos durante a semana de Natal pela Southwest Airlines, que fez parte do resgate das companhias aéreas no valor de 85 mil milhões de dólares, e que declarou um dividendo de 460 milhões de dólares aos seus acionistas. O Secretário de Estado que deveria estar a regulamentá-las, Pete Buttigieg, não fez nada, apesar de ter amplos poderes para intervir. E isto criou muitos partidários que defendem que se faça alguma coisa em relação ao poder das empresas. Agora, essas pessoas têm outras coisas para fazer nas suas vidas. Algumas vão desistir, mas outras vão guardar rancor e vão fazer parte deste movimento para domar o poder das empresas. E como estas empresas estão tão mal reguladas, tão ocas, e exercem o poder de uma forma tão paroquial e venal, acabarão por criar mais crises e ainda mais pessoas se juntarão ao nosso movimento.
Por isso, não creio que seja um ponto de viragem, mas sim uma espécie de acumulação lenta e inexorável da vontade popular. E penso que o nosso desafio é fazer com que as pessoas posicionem as suas críticas no lugar certo, que compreendam que se trata de poder empresarial desenfreado e dos funcionários que o permitem, que não se trata de um mal especial da tecnologia ou de um raio de controlo mental altamente improvável. Ou seja, estou certo de que é escusado dizer: não são os imigrantes, não é George Soros, não são as pessoas queer. É o poder corporativo sem controlo.
Gosto do seu livro, Chokepoint Capitalism, e acho que grande parte da nossa conversa se centrou em nós, consumidores ou ativistas. Não tocámos muito nos trabalhadores. O seu livro contém algumas histórias interessantes sobre a forma como os ativistas e os trabalhadores enfrentaram e reverteram o poder das empresas. Pode partilhar uma das histórias inspiradoras com a qual devemos aprender?
Claro. A minha preferida é, de facto, a dos condutores da Uber, que mencionamos no livro como exemplar. Aqui, na Califórnia, a Uber estava envolvida num roubo desenfreado dos salários dos motoristas, não o roubo normal de salários resultante da classificação incorreta dos trabalhadores, mas uma forma distinta de roubo de salários: estavam simplesmente a ficar com o dinheiro que deviam aos trabalhadores. Na Califórnia, os condutores da Uber tinham de aceitar uma cláusula de arbitragem vinculativa para poderem conduzir para a Uber, segundo a qual todos os litígios seriam apreciados por um árbitro, caso a caso.
Um árbitro é um juiz falso que trabalha para uma empresa contratada pela empresa que te prejudicou e que, sem surpresa, raramente decide contra a empresa que paga os seus honorários. Mas, mesmo que o faça, isso não importa, porque normalmente esse acordo é confidencial e não cria precedente, o que significa que a próxima pessoa não pode utilizar o mesmo argumento para obter um resultado semelhante. Mais importante ainda: a arbitragem vinculativa implica a proibição da ação coletiva, o que significa que todos os condutores da Uber teriam de contratar individualmente um advogado para os representar, o que nunca seria economicamente sensato ou viável. Tudo isto significava que a Uber podia escapar impune ao roubo de todo este dinheiro.
Os condutores da Uber trabalharam com uma firma de advogados inteligente e descobriram como automatizar as ações de arbitragem. E contratar um árbitro, que a Uber tem de pagar enquanto entidade que está a impor uma renúncia à arbitragem, custa alguns milhares de dólares. Assim, se um milhão de pessoas exigirem a arbitragem das suas reclamações, rejeitar essas reclamações custaria mais do que fazer a coisa certa e pagar. Portanto, perante centenas de milhões de dólares em honorários de arbitragem, a Uber fez um acordo com os condutores e deu-lhes 150 milhões de dólares em dinheiro, o que é absolutamente incrível.
Oh, isso é muito fixe. É um sinal de que a mudança é possível. E para continuar, gostaria de perguntar: acha que é possível reconfigurar o poder digital, vinculado, como o descreveu no início, ao interesse público, e utilizá-lo para enfrentar as grandes crises, como o colapso ambiental?
Penso que uma tecnologia que responda às necessidades dos seus utilizadores, uma tecnologia concebida para maximizar a autodeterminação tecnológica, é fundamental para qualquer futuro em que enfrentemos as nossas grandes crises. A principal coisa que a tecnologia digital faz, a melhor forma de compreender o seu poder transformador, é reduzir os custos de transação – os custos que suportamos quando tentamos fazer coisas com outra pessoa.
Quando eu era miúdo, por exemplo, se quisesse ir ao cinema com os meus amigos numa sexta-feira à noite, ou tínhamos de planear tudo com antecedência ou fazíamos aquela coisa absurda de telefonar às mães uns dos outros a partir de telefones públicos, deixando mensagens e esperando que, de alguma forma, fossem recebidas. Claro que, agora, basta enviar uma mensagem de texto para o teu grupo de chat a dizer: “Alguém quer ir ao cinema?” Este é um exemplo simples e direto de como reduzimos os custos de transação.
A Internet torna os custos de transação muito mais baixos. Permite-nos fazer coisas como construir enciclopédias, sistemas operativos e outros projetos ambiciosos de uma forma fácil e improvisada. A redução dos custos de transação é realmente importante para fomentar a mudança social porque, por definição, os atores poderosos já perceberam quais são os custos de transação. Se formos um ditador ou uma grande empresa, a nossa função é descobrir como coordenar muitas pessoas para fazerem a mesma coisa ao mesmo tempo. É aí que reside a fonte do seu poder – coordenar muitas pessoas para agirem em conjunto e projetarem a sua vontade em todo o mundo.
Assim, embora estes custos de transação signifiquem que o custo de descobrir quem está numa manifestação nunca foi tão baixo para os polícias, o custo de organizar uma manifestação também nunca foi tão baixo. Passei uma boa parte da minha infância a andar de bicicleta pelo centro de Toronto a colar cartazes em postes telefónicos, a tentar mobilizar pessoas para manifestações contra a energia nuclear, contra o apartheid, a favor do aborto, etc. Portanto, mesmo que as pessoas façam piadas do ‘clicktivismo’, trata-se de uma riqueza que ultrapassa os nossos sonhos mais loucos de há apenas algumas décadas.
Por isso, o nosso projeto não deve ser extinguir a tecnologia, mas sim descobrir como aproveitar os meios de computação, como construir um substrato tecnológico que responda às pessoas, que permita coordenar a nossa vontade, o nosso esforço e a nossa ética para construir o mundo que queremos, incluindo um mundo com menos carbono, menos injustiça, mais direitos laborais, etc.
Eis um exemplo de como isso pode ser feito para enfrentar a crise ambiental. É-nos frequentemente pedido para escolher entre o decrescimento e a abundância material. Assim, dizem-nos que decrescimento significa fazer menos com menos. Mas há um sentido em que uma maior coordenação permitir-nos-ia fazer significativamente mais com menos. Vivo numa casa suburbana nos arredores de Los Angeles, por exemplo, e tenho um berbequim barato porque só preciso de fazer um buraco na parede seis vezes por ano. Os meus vizinhos também têm berbequins péssimos pela mesma razão. Mas existe um berbequim muito bom. E se tivéssemos um mundo em que não nos preocupássemos com a vigilância, porque os nossos Estados são responsáveis perante nós, e não nos preocupássemos com o controlo coercivo, então poderíamos ter berbequins distribuídos estatisticamente pelos nossos bairros e os berbequins diriam onde estavam. Esse é um mundo em que temos um berbequim melhor, que está sempre disponível, sempre ao alcance da mão, mas em que a fatura dos materiais, da energia e da mão de obra diminui em ordens de grandeza. Requer apenas coordenação e responsabilidade na nossa tecnologia.
Para saber mais
Disenshittify or die! How hackers can seize the means of computation.
The Enshittification of Tech Platforms.
Digital Capitalism: conjunto de materiais de um curso do TNI para ativistas, para entender como a digitalização está a moldar o nosso mundo.