Comuns
Álvaro Fonseca e Graça Rojão (Rede para o Decrescimento)
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Os comuns (também designados por “recursos comuns” ou “bens comuns”) podem ser entendidos em dois sentidos principais: como um paradigma de governança e de gestão de recursos, e como um conjunto de práticas sociais em diversos campos da atividade humana. Como sistema de governança, a expressão refere-se às normas, regras e instituições ou comunidades que possibilitam a gestão compartilhada de recursos específicos. Como práticas sociais, são melhor compreendidos como processo social e deve falar-se em “fazer comum” ou “fazer os recursos comuns” (em inglês, foi criado o verbo “commoning”), em vez de considerar “recursos comuns” como uma coisa. Os comuns não são simplesmente bens coletivos materiais ou imateriais, mas sim processos de gestão compartilhada de tudo aquilo que uma comunidade (uma sociedade ou a humanidade como um todo) possui e gere em comum (ou deveria fazê-lo), constituindo, assim, uma perspetiva socioeconómica integrativa, alternativa às economias de mercado (capitalistas ou centralistas). O conjunto dos bens comuns que podem ser usados e geridos coletivamente inclui quer as dádivas da natureza (água, ar, solo, florestas, minérios, etc.), quer tudo o que a comunidade produz, como ferramentas, técnicas, conhecimento, espaços urbanos ou paisagens. Um recurso torna-se comum quando é cuidado por uma comunidade ou um coletivo. A comunidade, os bens/recursos e as regras de gestão são um todo integrado.
Embora este tipo de processo social seja comum a muitas sociedades humanas ao longo da história e seja ainda praticado por comunidades de povos originários, a designação pela qual é conhecido (“commons” em língua inglesa) surge na Inglaterra medieval com a Carta da Floresta (publicada uma década após a Magna Carta) que conferia às populações locais (as e os “commoners”) o direito de usufruto dos pastos e bosques de domínio senhorial. Esta prática viria a ser suprimida séculos mais tarde com a delimitação de propriedades (“enclosures”) imposta pelos/as grandes proprietários/as que impediram o usufruto comum desses terrenos. A este processo veio juntar-se a apropriação e mercantilização de muitos bens comuns, estimuladas pelo colonialismo, pela industrialização e pelas economias de matriz capitalista. Durante o mesmo período e estendendo-se aos dias de hoje, estabeleceu-se uma outra abordagem para proteger certos recursos através do conceito de bem público, gerido pelo Estado. No entanto, é importante distinguir entre bens comuns (na aceção aqui adotada) e bens públicos, na medida em que diversos Estados, independentemente dos regimes políticos que os governam, têm vindo a gerir os seus bens públicos com base nas lógicas mercantis e empresariais das economias capitalistas. Os comuns constituem, portanto, uma alternativa, quer à gestão privada, quer à gestão pública dos bens comuns.
Modernamente, o conceito de comuns ressurgiu com a publicação em 1968 do ensaio «The tragedy of the commons», onde o ecologista Garrett Hardin fez uma leitura enviesada do tema ao atribuir erradamente a um bem comum a aceção de bem de acesso livre que conduziria inevitavelmente à sua sobre-exploração, dada a alegada incapacidade dos membros de uma comunidade de refrear racionalmente o uso desse bem. Hardin defendia como soluções práticas a propriedade privada, como forma de proteger a exclusividade e uso racional do bem, ou o controle e a coerção exercidos por parte das autoridades no uso de bens públicos.
Os trabalhos da politóloga e economista Elinor Ostrom (que lhe valeriam o prémio Nobel) vieram repor a visão original de comuns, estendendo também o conceito de bem comum à propriedade intelectual e ao conhecimento na era digital e da internet, que, por sua vez, originou os conceitos de “knowledge commons”, de “creative commons” ou de “open source”. Ostrom definiu em «Governing the commons» de 1990 um conjunto de condições para que a (auto)gestão coletiva dos comuns seja simultaneamente sustentável e garanta a prosperidade das comunidades: limites claramente definidos, efetiva exclusão de partes não autorizadas, regras adaptadas localmente para a apropriação e provisão de recursos, sistemas de decisão coletiva (que permitam a participação da maioria), monitorização, sanções graduais para o não-cumprimento de regras, mecanismos facilmente acessíveis de resolução de conflitos e reconhecimento por parte de autoridades de nível mais abrangente.
Tem havido nas últimas décadas vários exemplos de tentativas mais ou menos bem sucedidas de pôr em prática o conceito de comuns no sentido de evitar a sua privatização e/ou sua depredação, que vão desde iniciativas relacionadas com o acesso à água na Bolívia ou em Itália, ou as atribuições de sujeito legal de direito e de gestão comunitária a rios na Nova Zelândia, na Índia, na Colômbia e no Canadá, às iniciativas relacionadas com o acesso livre ao conhecimento: intelectual (“creative commons”), científico (“open access”) ou informático (“software livre”). Em Portugal, podem destacar-se os baldios como práticas de gestão comunitária de território comum, que ainda estão ativos em algumas regiões (ver, p.ex. aqui).
Quem defende os comuns tende a estabelecer uma “lógica da abundância” (em oposição à “lógica da escassez” do capitalismo), que sustenta que será possível produzir o suficiente para todos os seres humanos se se conseguir desenvolver uma abundância de relacionamentos, redes e formas de governança cooperativa. Neste e noutros aspetos, esta abordagem aproxima-se das propostas de outras alternativas socioeconómicas como o decrescimento, o ecofeminismo ou o “Buen Vivir”.
Como tal, os comuns sugerem soluções radicalmente democráticas e baseadas no cuidado (como princípio unificador da gestão dos diferentes tipos de bens comuns), que não oponham as preocupações ambientais à justiça social. Os princípios do “fazer comum” não precisam de crescimento económico para prosperar: ajudam a substituir o imperativo cultural de “ter mais” das economias mercantis (capitalistas ou centralistas) por práticas sociais alternativas que privilegiam o “fazer juntos” em detrimento do “ter” e do “competir” na construção da prosperidade coletiva.
O foco mais recente do movimento dos comuns nos direitos de propriedade (intelectual/cultural) teve a virtude de abalar pilares fundamentais da economia de mercado capitalista e crescentista. Se “a economia” for reimaginada através das noções centrais dos comuns, como produção e gestão distribuídas, modularidade, propriedade coletiva e cuidado (ética ambiental, social e cultural), é possível conceber a ideia de um sistema económico que providencie qualidade de vida de forma equitativa, ao mesmo tempo em que se rejeitam noções e instituições capitalistas e mercantis: grandes corporações, mercados globais, concorrência, trabalho precário.
Textos e sites recomendados:
Christophe Aguiton, The Commons (Los Comunes); site ‘Systemic Alternatives’ (2017): versão em inglês, versão em castelhano
Silke Helfrich e David Bollier, Recursos comuns (Commons). In: ‘Decrescimento – Vocabulário para um novo mundo’. Tomo Editorial (Porto Alegre, Brasil), 2016. pp. 184-188
Sites nacionais:
Iniciativa dos comuns (Lisboa)