Dilemas das cooperativas face ao sistema capitalista

Entrevista a José Luis Sánchez Hernández. Tradução: Graça Rojão. Fotos: Graça Rojão e CIDAC.

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José Luis Sánchez Hernández (San Sebastián, Espanha, 1966) é professor de Geografia Humana na Universidade de Salamanca, onde desenvolve a sua carreira académica desde 1990. Especializou-se no estudo da relação entre inovação socioeconómica e desenvolvimento territorial, especialmente no setor agroalimentar. Esta linha de trabalho levou-o a interessar-se nos últimos anos por formas alternativas de economia (crítica, social, colaborativa) que promovam o desenvolvimento sustentável nas esferas social, económica e ambiental. Estas investigações recentes analisaram as oportunidades e limitações enfrentadas pelas economias críticas relativamente ao capitalismo, em Espanha, tanto nos espaços urbanos como nas zonas rurais.

Ferramentas em lã, de Reyhaneh Alikhani

Tem estudado as práticas económicas alternativas no Estado Espanhol. As cooperativas configuram uma prática económica alternativa ao sistema capitalista? Se sim, pode descrever como?

As cooperativas representam uma alternativa social ao sistema capitalista porque a propriedade das empresas cooperativas é coletiva e a tomada de decisões é também coletiva. As empresas capitalistas convencionais baseiam-se na relação salarial porque os e as trabalhadoras recebem um salário mensal pelo seu trabalho, mas não participam ativamente na gestão ou na tomada de decisões. Por seu turno, os e as cooperantes recebem mensalmente uma retribuição – considerada justa – pelo seu trabalho na cooperativa, que é de sua propriedade. Este caráter coletivo da cooperativa é, na minha opinião, o que faz destas um modelo alternativo ao capitalismo e à procura de lucro acima de tudo. De facto, quando as práticas económicas alternativas ganham dimensão e se institucionalizam como empresas, geralmente adotam a forma jurídica de cooperativa.

Conservação coletiva de fruta no bairro do Cabeço, Tortosendo (Covilhã)

Quais são os principais dilemas das cooperativas face ao sistema capitalista?

Penso que o principal dilema das cooperativas é, precisamente, não se tornarem empresas convencionais no seu funcionamento diário. Devem esforçar-se em não separar a propriedade coletiva da gestão empresarial especializada. Este é um problema importante porque nos mercados tradicionais as cooperativas têm muitas vezes de competir com empresas convencionais que acumulam muitos recursos de conhecimento e possuem mecanismos de tomada de decisão ágeis. Uma possível solução para este problema de “hibridação” do modelo cooperativo e do modelo convencional seria a formação de circuitos económicos (compra-venda) integrados por empresas cooperativas: se se formarem redes clientes-fornecedores entre cooperativas, poderiam preservar melhor os seus princípios e valores e abordar o “salto de escala” do sector cooperativo dentro de um mercado capitalista cada vez mais exigente.

Ao estudar as iniciativas locais, encontrou nelas impulsos distintos: de oposição, de transformação e de superação do capitalismo. Como se situam as cooperativas face a essas orientações?

Em conjunto, as cooperativas fariam parte das iniciativas que procuram transformar o capitalismo. Aceitam a propriedade privada, a liberdade de empresa e o mercado como mecanismo de coordenação entre a oferta e a procura. Por isso, não questionam os fundamentos do capitalismo nem se lhe opõem. Também não propõem fórmulas de organização socioeconómica (decrescimento, relocalização, por exemplo) que possam delinear um horizonte pós-capitalista. As cooperativas são empresas e, como tal, operam dentro do capitalismo, mas aspiram a construir um capitalismo humanizado, colaborativo e inclusivo através de uma fórmula societária específica. Na verdade, as cooperativas são o modelo empresarial “crítico” mais difundido nas sociedades capitalistas, pelo menos na Europa, o que prova, na minha opinião, que se tratam de propostas que não questionam o capitalismo de forma radical, antes tentam reformulá-lo a partir de dentro.

Em que dimensões do modelo de funcionamento cooperativo (independentemente do estatuto formal) vê maior potencial transformador?

As cooperativas constituem um exemplo de corresponsabilidade que me parece ser muito necessária para transformar a sociedade de mercado em que vivemos. O alargamento das relações de mercado a todas as áreas da vida social (cuidados, saúde, educação, gestão da água e da energia) tem um efeito muito negativo no envolvimento dos cidadãos e cidadãs na vida pública ou coletiva. Muitas pessoas pensam que tudo pode ser comprado (ou pago através dos impostos, na melhor das hipóteses) e, por isso, não é necessário participarem em qualquer estrutura social/económica nem tomarem decisões coletivas sobre o futuro da sociedade ou do planeta.

As cooperativas são um processo permanente de envolvimento individual num projeto coletivo ou partilhado. São um caso concreto de utilização inteligente do capital social. E está provado que o capital social (confiança nas outras pessoas) é um ingrediente fundamental das sociedades prósperas e avançadas. As regiões europeias com melhores índices de capital social e de solidez institucional têm atravessado melhor as crises sucessivas que assolam o mundo ao longo do século XXI. Por outras palavras, são mais resilientes.

Por conseguinte, a extensão dos princípios cooperativos à gestão de mais áreas sociais parece-me ser um contributo transformador muito relevante que as cooperativas podem dar à sociedade. Em alguns aspetos de grande complexidade técnica ou de elevada necessidade de capital (infra-estruturas, serviços públicos) o Estado, principalmente os poderes locais (autarquias) podem colaborar com recursos financeiros e de conhecimento na fundação de cooperativas ou no aconselhamento às já existentes.

Cooperativa Camacani, Puno (Peru)

Estamos perante resquícios de um modelo económico em extinção ou perante um campo em expansão? Do ponto de vista do questionamento do sistema económico, existem diferenças entre cooperativas mais antigas (históricas) e as mais recentes?

O individualismo que domina as atuais sociedades ocidentais é um verdadeiro obstáculo à expansão das cooperativas e para que estas alcancem um maior impacto social e económico. Talvez as primeiras cooperativas, históricas e assentes na fraternidade operária e no movimento sindical, tivessem um conteúdo crítico mais evidente, pois tentavam criar um ecossistema autogerido, alheio, na medida do possível, ao capitalismo industrial e monopolista anterior à Segunda Guerra Mundial.

Atualmente, as cooperativas carecem, segundo creio, desse objetivo mais ambicioso. A mais conhecida e importante em Espanha é a Mondragón Corporación Cooperativa, na província de Guipúzcoa1 que, na prática, é uma empresa multinacional que preserva estruturas participativas e salariais inspiradas em princípios cooperativos. Talvez as cooperativas mais críticas do sistema capitalista estejam integradas na Rede Espanhola de Economia Social e Solidária (REAS), que opera em todo o país e na qual participam iniciativas económicas locais que variam muito em termos de atividades, âmbito geográfico e forma jurídica.

Este modelo em rede é, precisamente, aquele que mencionei antes como uma possível fórmula para fortalecer as cooperativas e ajudá-las a preservar e reforçar os seus princípios e valores, e a demonstrar o seu valor à sociedade. Tal como as empresas capitalistas convencionais têm conseguido articular cadeias e redes produtivas muito eficientes, formadas por unidades produtivas altamente especializadas, as cooperativas poderiam explorar as redes (como já fazem as cooperativas de segundo grau2) como modalidade de coordenação e governação. O salto de escala que as economias críticas necessitam para sair do nicho marginal em que se encontram e oferecer uma alternativa eficaz a mais pessoas, lares, famílias e territórios exige pensar noutras soluções capazes de conjugar eficiência com valores.

1 NT: no País Basco.

2 NT: cooperativas de segundo grau correspondem às uniões, federações e confederações de cooperativas (art.º 5.º do Código Cooperativo português), isto é, são cooperativas de cooperativas.