É o wedge a fazer de mod balance!
Ou a nossa imersão na Festa do Software Livre…
CIDAC
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Gnu-Linux, Gimp, Libreoffice, Mozilla Firefox, Thunderbird, Chromium, VLC media Player, MySQL, PHP, todos estes softwares têm um ponto em comum, são softwares livres, isto é, garantem a liberdade de uso, de estudo (sendo o seu código-fonte1 de acesso livre), de melhoria e adaptação e de partilha e difusão, sem nenhuma restrição. O movimento do software livre nasceu no início dos anos 80, com uma palavra de ordem clara “é melhor controlar os softwares do que ser controlados por eles!”.
Em Portugal, a Associação Nacional para o Software Livre (ANSOL), uma associação sem fins lucrativos, assegura a divulgação, promoção, desenvolvimento, investigação e estudo da Informática Livre e das suas repercussões sociais, políticas, filosóficas, culturais, técnicas e científicas. E também organiza uma bela festa, a Festa do Software Livre, que decorreu este ano em Aveiro, no seio do Departamento de Eletrónica, Telecomunicações e Informática da Universidade, nos dias 11 e 12 de outubro.
“Little Brother” de Cory Doctorow

A Outras Economias, em plena preparação deste n.º 4 dedicado à inovação, tecnologia e economia, não podia faltar e rumou a Aveiro no Intercidades das 6h30, bem acompanhada pela equipa dos coletivos.org, ativistas programadores que fornecem à nossa revista uma plataforma informática livre e colaborativa que facilita a sua elaboração, e que, neste dia, ia apresentar o seu trabalho e, acessoriamente, ajudar-nos a entender melhor o evento, pois não somos muito geek e o facto de o wedge fazer de mod balance deixa-nos relativamente indiferentes…
Primeira constatação ao chegar ao evento: a comunidade do Software Livre não é muito extensa, e infelizmente quase totalmente masculina, transborda de entusiasmo e tem, de facto, uma maneira de falar às vezes impenetrável para leigos: bridge, bot, daemon e outros kernel… Como todas as comunidades, tem os seus códigos próprios: neste caso, computadores cheios de autocolantes com pinguins e gnus e t-shirts do FOSDEM2, Ubucon3 e outros eventos! Segunda constatação, o programa da Festa não é hermético ou auto-centrado mas, bem pelo contrário, fala-nos do mundo no qual vivemos, das ameaças reais ligadas ao software proprietário e aos gigantes do setor, das alternativas existentes, cheias de potencialidades, e fundamentalmente, fala-nos do valor fundamental da colaboração e do trabalho coletivo. Tudo isto com muita paixão! E com muita paixão e muita colaboração, até se consegue construir sistemas operativos!
1 O código-fonte de um programa é a sua versão em linguagem de programação, consistindo num ficheiro de texto. A seguir os códigos-fonte são compilados, isto é, traduzidos em código binário, sucessão de 0 e 1.
2 Free and Open Source Software Developers’ European Meeting.
3 https://ubucon.org/
“Eu sou o que sou graças ao que somos todos”
Sim, desde os anos 90 é possível usar sistemas operativos alternativos ao Windows© ou IOS©, tendo recurso ao sistema livre GNU/Linux! E, se no início não era muito fácil para principiantes fazerem a instalação, hoje em dia, é uma simples formalidade, intuitiva e rápida. O sistema GNU/Linux tem várias versões, chamadas “distribuições” ou “distros”, cada uma com a sua identidade e a sua especialização. Uma delas foi criada para ser de fácil instalação e utilização pelo grande público, e chama-se Ubuntu, palavra oriunda da língua Bantu que significa “eu sou o que sou graças ao que somos todos”. Esta versão assenta numa empresa, a Canonical, numa fundação, a Ubuntu Foundation, e numa comunidade mundial. A primeira intervenção do dia à qual assistimos foi animada pela Comunidade Ubuntu Portugal, a única comunidade portuguesa criada à volta de uma distribuição GNU/Linux. Esta comunidade assume vários papéis como a promoção do software livre e da distribuição Ubuntu através das redes sociais e outros meios de comunicação ou da organização de eventos, de modo a sensibilizar e a informar sobre as valências do Software Livre. Esta comunidade é também responsável pela tradução de Ubuntu em Português, tem uma equipa que produz documentação e outra que proporciona apoio técnico a quem precisa. Tudo isso numa base voluntária. As várias comunidades Ubuntu, a nível mundial, contribuem também para a evolução e a melhoria da distribuição a nível global.
A Comunidade Ubuntu Portugal, além do seu trabalho à volta desta distribuição, também anima o Centro Linux, que promove a partilha de conhecimento e de experiências na comunidade de GNU/Linux, Software Livre e Software Open Source. O Centro Linux funciona no MILL – Makers In Little Lisbon, um makerspace onde a dimensão comunitária é também central.

Coletivosorg, ou como ferramentas informáticas livres podem servir ações coletivas, associativas, cooperativas…
Foi outra intervenção à qual assistimos, promovida pelos coletivosorg, que tem por objetivo, como o nome indica, apoiar coletivos, formais ou informais, na promoção dos seus eventos. Isto por um lado, através da página eventos.coletivos.org e, por outro, prestando serviços de administradores locais e de programadores para necessidades específicas dos seus membros. Na sua intervenção, o coletivo relembrou quão invasivas são as grandes empresas do setor digital, que se alimentam de todos os aspetos da nossa vida pública e privada engolindo gigabits de dados pessoais. “Se é gratuito, és o produto!” foi uma espécie de lema desta introdução que se prolongou com as alternativas ao nosso alcance, para passarmos de “Produto” a “Pessoa”: Youtube? PeerTube. Facebook? Friendica. X? Mastodon. Zoom? Jitsi. Instagram? PixelFed. Google Cloud? Nextcloud… Há soluções open source para quase tudo! E como pano de fundo um conceito diametralmente oposto ao dos GAFAM4, o de descentralização, isto é, não colocar todo o poder numa só mão, garantir a nossa soberania e privacidade através da desmultiplicação e da colaboração. O Fediverso, rede de servidores federados é um bom exemplo disso. A equipa do coletivosorg defende também (e dá corpo) a figura de programador e administrador local como mediador entre cidadãos e cidadãs organizadas e o mundo do digital, que demasiado frequentemente nos parece impenetrável, complexo, fora da nossa capacidade de entendimento.
4 Acrónimo das cinco gigantes da tecnologia hoje em dia: Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft.
Propriedade intelectual e partilha do saber...
A seguir a um café e umas sandes, gentilmente oferecidas pela ANSOL, fomos ouvir a equipa da Wikimedia Portugal, representação nacional da comunidade global, a Fundação Wikimedia, que suporta o projeto Wikipedia e todos os projetos que nasceram à volta desta ideia de criação colaborativa de conhecimento de maneira aberta: Wiktionary, Wikiquote, Wikibooks, Wikimedia Commons… No centro da apresentação, os direitos de autores e o domínio público e algumas ideias defendidas que merecem a nossa atenção, como o facto dos direitos de autor poderem colidir com direitos fundamentais das pessoas, o livre acesso à informação e à cultura, por exemplo. E pode também permitir a limitação da difusão de autores e ideias por detentores de direitos3… A Wikimedia relembrou, por exemplo, que a passagem da obra 1984 de George Orwell para domínio público desencadeou novas edições, novas traduções, novas adaptações, em romance gráfico por exemplo. Abordou-se também a questão das licenças livres como as licenças GPL, MIT ou Creative Commons, sendo esta última a licença que enquadra a presente revista. Convidamos as leitoras e leitores a pesquisarem este universo das licenças livres de maneira… livre!
5 A Outras Economias, por exemplo, tentou traduzir e publicar um texto da Ursula K. Le Guin neste número, um texto raro, pouco publicado e indisponível em Português. Os detentores dos direitos opuseram-se a esta publicação, apesar de estarmos dispostos/as a pagar pela utilização do texto…
6 A retro-engenharia é um processo dedutivo que permite explicar como um sistema existente funciona sem ter acesso às suas funções internas. O que um piloto proprietário de impressora faz, e a partir disso, como é que se consegue fazer algo que funciona de maneira igual, ou melhor, ou com maior segurança…
Um pedaço de história da aventura GNU-Linux…
Com um almoço e muita informação ainda por digerir, fomos assistir à intervenção do Till Kamppetter, responsável da OpenPrinting. O Till Kamppeter contou, num Português perfeito, o seu percurso pessoal desde os anos 1990, quando assumia o papel de administrador de sistema e de professor numa universidade alemã. Confrontou-se, na altura, com a problemática da incompatibilidade das impressoras com sistemas de código aberto, pois estas últimas são concebidas para funcionar com os sistemas operativos dominantes. O seu investimento nesta problemática acompanha toda a história do desenvolvimento do sistema GNU-Linux, tendo Till Kamppeter integrado a administração da Fundação Linux, junto com o próprio Linus Torvalds, criador do Linux. Todo o seu trabalho de programação, de promoção, de organização com vista a permitir a maior compatibilidade de todas as impressoras e scanner com sistemas operativos livres convergiu para a criação de uma organização agora integrada na Fundação Linux, a OpenPrinting. Muita gente à volta deste planeta, todos os dias, faz retro-engenharia6, programam, testam, para que seja fácil para nós, defensores/as do software livre, instalar as nossas impressoras com a maior facilidade. Foi o desafio lançado pelo Till no final da sua intervenção: juntem-se a esta aventura e contribuam com linhas de código ou com tradução de documentação. Sempre a colaboração como sistema que funciona!
Os despojados de Ursula K. Le Guin.
Homeland, de Cory Doctorow.
Coerência!
O dia avança e as apresentações somam-se. Agora é a vez do CEIS, Centro para a Economia e Inovação Social, uma estrutura pública que surge de um acordo entre os governos de Portugal e de Espanha e que tem por missão “promover a capacitação das entidades da economia social, através da realização de formação profissional e de reconhecimento, validação e certificação de competências, bem como, de prestação de serviços e de apoio técnico a entidades no âmbito da economia social”. Quem nos fala não é o diretor, nem o responsável técnico mas o responsável jurídico da instituição. E qual é a mensagem principal? O Open Source é o mais coerente com o que defende a Economia Social, nomeadamente o espírito de partilha, a colaboração e o apoio mútuo. Outra constatação, “se não se conhece, não se usa…”. É com estas premissas que o CEIS optou, primeiro, por funcionar com recurso ao software livre e, segundo, colocar este recurso no centro das suas formações, como “tubo de ensaio”, com o objetivo de, a seguir aos momentos de capacitação dos responsáveis de estruturas da Economia Social, estes passem a usar este tipo de software nas suas entidades. Uma estratégia de contaminação positiva! Um dos maiores obstáculos com o qual se defrontam neste domínio é o de resistência à mudança, pois crescemos, estudamos e começamos a trabalhar com sistemas operativos proprietários que formatam as nossas mentes e tornam difícil ou angustiante a ideia de mudança. Mas as atitudes mudam, devido em parte a renovações geracionais. Esta instituição do Estado faz tutoriais de formação com OBS (Open Broadcaster Software), edita imagem com Krita, ou Ink Scape para o vetorial, edita vídeo com Shotcut, usa o leitor VLC, tem o Linux Mint nos PC, Ubuntu Server nos servidores e faz formação a distância com recurso ao Moodle. Uma caixa completa de ferramentas livres!
Dados e Soberania…
É que esta coerência que encontramos no CEIS é exceção, não é regra nas instituições do Estado, que é GAFAM-dependente… Foi esta a problemática que encerrou o primeiro dia, com um debate sobre Soberania Digital que juntou representantes dos partidos CDS-PP (Raquel Castro Madureira), Livre (Filipe Honório), Bloco de Esquerda (Pedro Filipe Soares) e Iniciativa Liberal (Rui Ribeiro), sob a moderação de João Ribeiro, jornalista e editor da revista Shifter. Mesmo antes do início desta sessão, um participante, membro da ANSOL, interveio desde a plateia: “Temos de saudar que são 4 vezes mais partidos do que na última vez que tentámos organizar este debate!”. Isto é, da última vez, zero… Mas a moeda parece ter caído agora, e a questão da soberania digital já não é um assunto periférico de estranhas Cassandras, mas sim um assunto central levado a sério desde os Estados até à União Europeia. As empresas dos Estados Unidos da América dominam o setor do digital há já muito tempo e a potência dos GAFAM ultrapassa frequentemente a capacidade de regulação dos Estados, que são também seus clientes… O Estado produz dados, o Estado coleta dados (nossos) em sistemas sobre os quais não tem controle, sistemas proprietários, sem acesso ao código fonte, isto é, sem garantia real de segurança… Onde estão localizados os servidores em que se armazenam estes dados? Com que custos e quem está a pagar por eles? A que sistema jurídico respondem? Quais são os softwares que gerem os sistemas energéticos de um país? Num momento em que a desmaterialização é palavra de ordem na administração pública, é fundamental ter o controle sobre as ferramentas que a tornam possível. O debate pode ser resumido muito rapidamente, tal como o fez um dos intervenientes: “desligam a transmissão em streaming, não pode haver testemunhas: neste ponto concordamos todos e todas!”. De um ponto a outro do leque partidário, e por razões muitas vezes opostas (ou pelo poder de regulação do Estado ou em nome das regras do mercado e da luta contra o monopólio dos GAFAM…), surgiu um consenso sobre a necessidade vital de se retomar o controle sobre o digital e de se promover efetivamente o software livre.
E é com este raro consenso que a nossa imersão no mundo do software livre acabou. Uma última palavra: em quase todas as intervenções, ao longo do dia, frisou-se a importância das relações humanas, do encontro físico, do inter-conhecimento, das cumplicidades, da virtude das conversas, quebrando o estereótipo do geek fechado no seu quarto e afirmando o software livre como uma das peças para a construção de uma sociedade do convívio que podemos e desejamos.