Fairphone – pode a mudança estar mesmo nas nossas mãos?
Maria Inês Santos
Tempo aproximado de leitura: 5 minutos
Se jogássemos um jogo de associação de palavras, muitos de nós não pensariam em “telefone” quando ouvissem a palavra “justiça”. Afinal de contas, nos dias de hoje é muito comum circular informação sobre o novo telemóvel acabadinho de ser lançado e nessas notícias não se costuma falar sobre onde o telefone foi feito, como, por quem, com o quê.
Foi aqui que a Fairphone, uma empresa de eletrónica sediada em Amesterdão, quis criar o seu espaço e mudar a forma como experienciamos esta ferramenta que anda sempre nas nossas mãos.
Com um foco na ética e sustentabilidade das diferentes etapas da produção, nos últimos 11 anos a Fairphone tem trabalhado para melhorar os materiais que servem de base ao telefone, as condições oferecidas ao grupo de trabalhadores/as que o montam, a nossa capacidade, enquanto utilizadores/as, de o reparar e utilizar à nossa maneira, e as soluções para o fim de vida destes equipamentos. Nas suas palavras, querem ir contra o que veem como short-term thinking, ou pensamento a curto prazo, da indústria.
O primeiro Fairphone surgiu em 2013, em resultado de uma campanha de crowdfunding que procurava chamar atenção para o tema dos minerais extraídos em zonas de conflito e viria a criar o primeiro telefone com maior foco nos materiais que o compõem.
Em 11 anos, e já no Fairphone 5, trabalharam para garantir que utilizam ouro proveniente de comércio justo e foram membros fundadores da Fair Cobalt Alliance, uma coligação de diferentes entidades que procura reforçar o sector mineiro artesanal do cobalto na República Democrática do Congo e apoiar a resiliência económica das comunidades locais. Têm continuamente procurado melhorar a sustentabilidade da extração e acesso a 14 minerais e materiais, como o estanho, tungsténio, cobre e o plástico, com 70% a serem provenientes de fontes justas ou reciclados. Desenharam, ainda os seus “Fair Sourcing Principles”, ou Princípios de Fornecimento Justo. Aqui abordam o que rege a relação com os seus fornecedores, mas também demonstram a forma como, enquanto empresa, procuram walk the talk, ou seja, garantir que os seus valores guiam a sua forma de ser, estar e fazer, em todas as etapas e departamentos.
Mas não é apenas na fase inicial de produção que a Fairphone procura fazer diferente. Falando de utilização de materiais, podemos passar à fase final de uma cadeia de produção: o que fazer quando já não é possível reparar. A Fairphone tem disponível o seu próprio sistema de gestão dos nossos telefones antigos e de combate ao lixo eletrónico (e-waste), com foco tanto na reutilização dos materiais recolhidos como na sua reciclagem.
Adicionalmente, e porque não são apenas os materiais que tornam os nossos telefones realidade, a Fairphone procura também garantir a dignidade das pessoas que os montam, com aposta na melhoria de condições de trabalho, comunicação entre trabalhadores/as e satisfação laboral. Como explica a antiga CEO da empresa, Eva Gouwens, com cerca de 2$ extra em cada telefone, é possível contribuir para um salário digno e decente (living income) dos e das trabalhadoras que constroem o telefone que estamos a comprar.
Para além da sustentabilidade e dignidade que procuram incutir em toda a cadeia de produção, a Fairphone acredita que a mudança está nas nossas mãos enquanto utilizadores/as, literalmente. Quando adquiri o meu Fairphone – o Fairphone 2 – a sua modularidade e o foco na durabilidade foram chamariz irresistível. Miquel Ballester Salvà, diretor de desenvolvimento de produto na Fairphone, insiste que é preciso aumentar o número de anos de existência dos nossos equipamentos, através de maior aposta na reparação, que por sua vez significa uma aposta na nossa titularidade (ownership) sobre os bens que adquirimos. Neste sentido, a Fairphone tem sempre trabalhado para melhorar o design dos seus telefones e foi a primeira empresa a receber uma pontuação de 10/10 na iFixit, a maior comunidade online de reparação.
Mas como garantem esta reparabilidade na prática? Para além de uma garantia de 5 anos e 8 anos de atualizações de software, o seu design modular significa que muitos dos seus componentes são de fácil acesso e substituição, quando aquela avaria inevitável acontece. Componentes como a bateria, as câmaras, o módulo do microfone ou de som, a porta USB-C ou o ecrã podem ser adquiridos na marca e trocados rapidamente, em casa, sem qualquer necessidade de sermos especialistas em eletrónica.
Esta é também a forma de reduzir as emissões de CO2. Afinal de contas, se usarmos os nossos telefones o dobro do tempo, só precisamos de produzir metade dos telefones, como diz Miquel Ballester.
O meu Fairphone, comprado em 2016, sobreviveu até 2023. Passou por 4 trocas de peças, facilmente feitas por mim com a ajuda de uma pequena chave de fendas, inúmeras quedas sem grandes repercussões e um fim de vida com algumas resmunguices da minha parte (recusava-me a acreditar que tinha chegado o fim, admito).
Acredito que, enquanto utilizadores/as, as nossas escolhas sobre o que compramos não são livres de peso ou repercussões. A possibilidade de ter na mão algo construído tendo por base valores em que me revejo, e que espero virem a tornar-se a realidade na indústria eletrónica, foi o que me levou a apostar na Fairphone. Mas vivenciar a sua durabilidade e reparabilidade, experienciar esta ownership, fez com que a veja como o futuro.