O PAPEL DA EDUCAÇÃO POPULAR NO FORTALECIMENTO DOS MOVIMENTOS CAMPONESES EM TIMOR-LESTE
Leonardo F. Soares e Jenito Santana, Kdadalak Sulimutuk Institute (KSI)
Tempo aproximado de leitura: 18 minutos
O mundo enfrenta diversos problemas complexos nas áreas social, econômica, ambiental, cultural e política, causados pelo sistema capitalista global, que carece do espírito de libertação dos povos, reforçado pelo movimento de globalização da economia, da ciência e da tecnologia, que destrói a cultura do coletivismo e a sensibilidade às pessoas e à ecologia. Isso ocorre porque nosso conceito de educação não reflete a realidade sociocultural e socioeconômica da sociedade. A educação liberal considera as pessoas como capital, não como seres humanos, moldando o conhecimento e as habilidades das pessoas para encontrar empregos que atendam apenas aos seus interesses individuais, sem sensibilidade aos problemas sociais e às injustiças que ocorrem na sociedade.
Isso requer uma educação popular com base sólida em ideias revolucionárias para lutar pela libertação do povo, pela emancipação das mulheres, pela preservação ambiental, entre outras. Os camponeses e jovens precisam se unir no espírito de ativismo e no espírito de coletivismo e movimento social para lutar por uma sociedade justa, solidária e democrática. Além disso, é necessário formar seres humanos qualificados e com alta sensibilidade social para contribuir para a transformação da sociedade com base no conhecimento científico e no conhecimento local existente (Termo de Referência do IEFS, 2024).
A ecoepistemologia é uma abordagem que busca descobrir a existência da relação entre o ser humano e a natureza, e descobrir que a existência do homem e da natureza têm seu próprio poder e que uma não domina a outra, mas existe uma relação recíproca que não pode ser separada. A educação deve buscar promover essa noção na prática real da sociedade. A educação é parcial; deve ser a favor dos pobres, a favor da ecologia, a favor da verdade e da justiça social (da Silva, 2022).
Kadalak Suli Mutu, Diva Estrelita, Alberto Piedade (BePi), Associação Estrela Esperança
A Importância do Engajamento dos Jovens nos Movimentos Camponeses
Diante da crescente desigualdade e do aprofundamento da crise climática, uma nova geração está surgindo não com apatia, mas com propósito. Em áreas rurais e centros urbanos, os jovens estão se destacando como catalisadores da transformação, entrelaçando a luta contra a pobreza com a luta pela proteção do planeta. Eles estão organizando a agricultura comunitária para consumo doméstico e vendendo no mercado para obter renda como um ato de trabalho autônomo, criando cooperativas locais que geram renda respeitando a natureza e resgatando conhecimentos tradicionais para restaurar terras degradadas. Com inovação e resiliência, eles estão transformando resíduos em recursos, telhados em fazendas e ideias em negócios sustentáveis (Búrigo, Rover e outros, 2021).
Os e as jovens entendem que a pobreza não é apenas a ausência de renda — é a ausência de oportunidades, dignidade e voz. É por isso que eles não estão esperando pela mudança — eles estão se tornando a mudança. Por meio da agroecologia, tecnologias verdes, educação e ativismo, eles estão abordando as causas básicas em vez dos sintomas (da Silva Junior, 2018). Suas ações desafiam sistemas que exploram as pessoas e a natureza, substituindo-os por modelos baseados em solidariedade, justiça e cuidado. Seja defendendo nas ruas, plantando no solo ou codificando dados climáticos, os/as jovens de hoje estão provando que erradicar a pobreza e proteger a terra não são batalhas separadas — são uma luta unida (da Cunha e outros, 2014).

O envolvimento ativo da juventude nos movimentos dos camponeses torna-se essencial. Os jovens não são apenas herdeiros dos problemas socioecológico e socioeconômico – são também agentes fundamentais da transformação. Investir em sua formação é garantir um futuro com cidadãos conscientes, críticos e comprometidos com a construção de sociedades sustentáveis.
“Os jovens não são apenas vítimas da injustiça climática, mas também a esperança de um futuro melhor.“
Saher Rashid

Através de processos educativos que conectam saberes tradicionais, ciência ecológica e justiça social, os jovens desenvolvem capacidades para analisar a realidade, propor soluções e liderar ações que promovam o equilíbrio entre o ser humano e a natureza. A educação popular, portanto, não é apenas uma ferramenta pedagógica, mas uma estratégia de resistência e construção de alternativas para enfrentar a crise social e climática global (Pedrosa e outros, 2022).
Em um cenário de emergência climática e desigualdades socioambientais crescentes, o investimento na formação de jovens por meio da educação popular crítica representa uma estratégia política central para a construção de sociedades resilientes e justas. Os jovens, especialmente os das zonas rurais e periféricas, ocupam um papel estratégico como sujeitos históricos capazes de impulsionar transformações estruturais nos territórios em que vivem (A. H. Maia, 2011).
A educação popular é importante porque reconhece as condições de vida, atua a partir da realidade, promove e organiza redes de apoio social que, neste momento, são fundamentais (G. Nespoli, 2020). É possível perceber, contudo, que no atual movimento de luta pela educação há certa conquista do poder de participação popular, inclusive na articulação entre associações, sindicatos e movimentos populares, “com vistas à soma de esforços em prol da conquista imediata e crescente de mais direitos populares”.
Papel do KSI no Apoio aos Movimentos Camponeses em Timor-Leste
O Kdadalak Sulimutuk Institute (KSI) desempenha um papel fundamental no fortalecimento do movimento camponês em Timor-Leste por meio de sua abordagem singular à educação popular. Fundado em julho de 2000, o KSI tem sido fundamental para enfrentar os desafios das comunidades rurais, especialmente no que diz respeito aos direitos à terra, à soberania alimentar e à agricultura sustentável. O trabalho do Instituto está profundamente enraizado na filosofia da educação popular, que enfatiza uma abordagem de aprendizagem de baixo para cima, participativa e crítica (Freire, 1970). Esse método contrasta com os modelos educacionais tradicionais, de cima para baixo, ao incentivar as e os participantes a se tornarem agentes ativos em seu próprio processo de aprendizagem e transformação social.
Educação Popular Como Ferramenta de Empoderamento
A metodologia do KSI baseia-se na ideia de que o conhecimento não é algo a ser simplesmente transferido de um especialista para um aluno, mas sim um produto do diálogo e da experiência coletiva. Essa abordagem, fortemente influenciada pela obra de Paulo Freire, capacita os camponeses a analisar criticamente suas próprias realidades e a identificar soluções para seus problemas (Freire, 1970). Por meio de workshops, seminários e treinamentos de campo, o KSI facilita discussões sobre questões complexas, como as leis de posse da terra, os impactos das mudanças climáticas na agricultura e a importância da organização para a ação coletiva. Esse processo ajuda a desmistificar os marcos jurídicos e políticos, tornando-os acessíveis àqueles que são mais afetados por eles.
Por exemplo, o KSI realizou sessões de treinamento sobre as nuances da legislação fundiária em Timor-Leste, que muitas vezes é complexa e de difícil compreensão para as comunidades rurais. Utilizando linguagem simplificada e estudos de caso reais, a KSI ajuda os camponeses a compreender seus direitos e como defendê-los contra apropriações de terras ou contratos injustos (Relatório Anual do KSI, 2022). Este trabalho educativo não se resume apenas à transmissão de informações; trata-se de desenvolver consciência crítica e confiança entre os camponeses para desafiar estruturas injustas.

Apoiando o Movimento Camponês
As iniciativas de educação popular do KSI contribuem diretamente para o fortalecimento do movimento camponês em Timor-Leste. O instituto trabalha em conjunto com organizações camponesas locais, fornecendo-lhes as ferramentas e o conhecimento necessários para defender seus direitos. Ao promover o diálogo e a solidariedade entre diferentes comunidades, o KSI ajuda a construir uma frente unificada que pode pressionar o governo e outras partes interessadas de forma mais eficaz. O apoio do instituto se estende à assistência prática, como ajudar as comunidades a desenvolver propostas para projetos agrícolas sustentáveis ou organizar protestos pacíficos para expressar suas preocupações.
Uma conquista fundamental do trabalho do KSI é seu papel na promoção da soberania alimentar, um conceito que defende o direito dos povos a alimentos saudáveis e culturalmente adequados, produzidos por meio de métodos sustentáveis (Via Campesina, 1996). Os programas educacionais do KSI incentivam o uso de técnicas agrícolas tradicionais e desencorajam a dependência de fertilizantes químicos e sementes geneticamente modificadas. Isso promove o equilíbrio ecológico e garante que as comunidades tenham controle sobre seus sistemas alimentares, reduzindo sua dependência de mercados externos e de grandes corporações. O apoio da organização aos bancos de sementes locais e às práticas agroecológicas é uma prova do seu compromisso com este princípio (Relatório Anual do KSI, 2022).

Processo Pedagógico de Educação Popular no IEFS
Com base em todas essas análises, o Kdadalak Sulimutuk Institute-KSI, como organização social camponesa, busca materializar o conceito por meio de seus programas como uma solução prática para a realidade no nível de base. Assim, desde 2013, o KSI juntamente com a União dos Agricultores de Ermera (UNAER) e o Instituto dos Estudos de Paz, Conflito e Sociais (IEDKS) iniciou uma escola alternativa para as e os camponeses no município de Ermera chamada Instituto de Economia Fulidaidai Slulu – IEFS.

O objetivo geral desta escola é capacitar jovens, líderes sindicais e agricultores/as de base para contribuírem ativamente para a mudança. Além disso, a filosofia adotada pela escola é “trazer recursos de volta à base”. Isso significa que, após os e as alunas aprenderem na escola IEFS, retornarão à base, permanecerão na comunidade e usarão o conhecimento adquirido para transformá-lo em ações concretas, contribuindo para a mudança comunitária na base.
A existência do IEFS é essencial para o fortalecimento do movimento camponês em nível de base. Um movimento é forte quando seus membros são empoderados, têm a capacidade de interpretar a situação sociocultural e socioeconômica da base, têm a capacidade de se atualizar na sociedade e têm a capacidade de oferecer soluções alternativas para as lacunas que ocorrem na sociedade. O IEFS introduziu o currículo de agroecologia como uma ciência interdisciplinar para jovens agricultores/as com 10 unidades temáticas, tais como: Introdução à Agroecologia, Agricultura Sustentável, Soberania Alimentar, Reforma Agrária, Movimento Social, Economia Social Solidária, Pesquisa Social Participativa, Saúde Popular, Ativismo e Inglês para Agroecologia. Essas disciplinas, divididas em mais de 60 sessões, incluindo teoria e prática, foram facilitadas por mais de 25 facilitadores/as de diversas organizações, ONGs e movimentos sociais sediados em Timor-Leste.
As sessões teóricas e práticas duraram três meses (início de novembro 2024 a início de fevereiro de 2025). O total de alunos/as ativos/as que participaram das aulas teóricas e práticas foi de 22 jovens. As sessões foram realizadas em um ambiente dinâmico e interativo, adotando métodos participativos e dialogados, inspirados na pedagogia do oprimido de Paulo Freire.
Há uma área de ½ hectare localizada na área da escola para facilitar as sessões práticas. Todos os e as alunas ficaram hospedados em um dormitório comunitário com 4 quartos, uma cozinha popular, um refeitório, uma casa de banho. Além disso, desenvolveu-se um programa chamado serviço social comunitário, que oferece aos alunos a oportunidade de participar de atividades sociais com a comunidade local e líderes locais como parte do programa extracurricular todos os sábados. A escola também oferece espaços para artes populares, como música, danças culturais, poesia e esportes (Relatório do IEFS, Agosto 2025).

Após a conclusão das sessões teóricas e práticas durante um período de três meses, o IEFS também possui um programa chamado projeto comunitário. Projetos comunitários são programas curriculares incluídos no programa escolar. Os projetos comunitários oferecem às alunas e alunos espaço para interagir diretamente com a comunidade local e também aplicar seus conhecimentos em ações concretas. Por meio deles, nossos alunos têm a oportunidade de trabalhar com a comunidade local, identificando problemas, definindo prioridades, formulando planos de ação, implementando-os e avaliando as ações em conjunto com a comunidade local. É essencial ressaltar que os projetos comunitários devem colocar a comunidade no centro do desenvolvimento e engajá-la como protagonista da mudança que está ocorrendo em seu território.
Neste programa, os e as alunas foram divididos em 6 grupos (cada grupo composto por 3 a 4 membros) de cada comunidade base. Os grupos tiveram que escolher seus temas (1 a 3 temas por grupo), por exemplo: conservação de água, agricultura integrada, fertilizantes orgânicos, processamento de alimentos, agrofloresta, horticultura integrada, cooperativas, trabalhos sociais e conscientização comunitária. A maioria optou por retornar às suas aldeias para implementar projetos comunitários.
Notas Finais
A Educação Popular é definida como uma filosofia da educação, uma pedagogia, uma práxis e também um campo de saberes e práticas. Ela tem origem em movimentos sociais que se insurgiram na América Latina contra os processos de colonização e os governos autoritários na segunda metade do século 20. Em Timor-Leste, a educação popular desempenhou um papel crucial no processo de resistência do povo Maubere pela libertação, introduzindo um modelo de educação popular para que os guerrilheiros e o povo se consciencializassem dos efeitos negativos do colonialismo e dos valores fundamentais da luta de libertação (Penteado Urban, 2022)
Na era da independência, a educação popular continuou a desempenhar um papel importante na educação e sensibilização dos/das jovens e dos/das camponeses/as para que compreendessem a sua realidade social e encontrassem formas de responder a essa realidade. Assim, o KSI continua a desempenhar este papel essencial, juntamente com os grupos de agricultores e os movimentos camponeses, na luta pela soberania alimentar, pela independência económica e na reafirmação do princípio da independência como uma realidade da sociedade Timorense.
Em suma, a dedicação do Kdadalak Sulimutuk Institut-KSI à educação popular é um pilar fundamental da sua missão de apoio ao movimento camponês em Timor-Leste. Ao capacitar as comunidades rurais com conhecimentos e competências de pensamento crítico, o KSI permite-lhes tornarem-se defensores/as influentes dos seus próprios direitos e de um futuro mais justo e sustentável.

Referências
Búrigo, Fábio Luiz; Rover, Oscar José. Cooperação e Desenvolvimento Rural OLHARES SUL AMERICANOS. I edição. Florianopólis: Letras Contemporaneas, 2021.
da Cunha, Belinda Pereira; Augustin, Sérgio. Sustentabilidade Ambiental; Estudos Jurídicos e Sociais. Caxias do Sul, RS. Educs, 2014.
Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Pastor e Pastor, 1970
Hobsbawm, Eric. A era do capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
Instituto Ekonomia Fulidaidai Slulu-IEFS. Relatorio Programa, 2025
Kdadalak Sulimutuk Institute-KSI. Relatório Anual, 2022
Maia, Ana Heloísa. Vivências e Projetos das Jovens Rurais: Um Olhar Sob Sua Condição de Mulher na Agricultura Familiar e a Relação com suas Estratégias de Vida. Ilha Solteira–SP, Setembro de 2011.
Nespoli, Grasiele. “A educação popular é importante porque reconhece as condições de vida, atua a partir da realidade, promove e organiza redes de apoio social que, neste momento, são fundamentais”. Reportagens Acontece na EPSJV Entrevistas, 2020.
Pedrosa, Rebekah; Tamaio, Irineu. A Educação Ambiental frente ao desafio da crise climatica, na visão de um material pedagogico da UNESCO: reprodutivista ou transformador. Vol 17 10-Revista Brasileira de Educação Ambiental (Revbea), 2022/12/01.
Penteado Urban, Samuel; da Silva, A. Benedito; Lissingue, Irlan Von. Educação Popular em Timor-Leste; Passado e Presente, 2022.
Penteado Urban, Samuel. Paulo Freire e a educação popular em Timor-Leste: uma história de libertação. Revista Educação e Emancipação 10(1):76, 2017.
Sambuichi, Regina Helena Rosa; de Oliveira Micel Angelo Costantino; et al. A Sustentabilidade Ambiental da Agropecuária Brasileira: Impactos, Políticas Públicas e Desafios. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.- Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2012.
da Silva, Antero Benedito; Soares, Leonardo F. Revista de Agroecologia Edição I, Junho 2022
da Silva Junior, Paulo Roberto. O/A Jovem Chamado/A Nem Nem: Produzindo Questionamentos a Partir de Pesquisas sobre Juventude e das Experiências de Jovens Pobres. Belo Horizonte, 2018.
Via Campesina. Declaration of the World Summit on Food Security, 1996
Para saber mais
Escola Família Agrícola Jaguaribana Zé Maria do Tomé – Tabuleiro do Norte
Universidad Rural Paulo Freire (Estado Espanhol)
Recursos online sobre educação popular, agricultura e agroecologia camponesa:
ANAP (Cuba) e Via Campesina, Escuela Campesina Multimedia
ANAP (Cuba), Video-Curso de Metodología Campesino a Campesino
