Resistência aos acordos de comércio livre: a experiência do Equador
Uma conversa entre Francisco Venes, ecologista político, CIDAC e Benjamín Macas, membro da Confederação Camponesa Agroecológica do Equador (CCAE), promotora da agro-ecologia e da soberania alimentar no país. Integrou o Conselho Político do Movimento Agroecológico da América Latina e do Caribe (MAELA), rede que articula os países da região na construção de tecido social, partilha de experiências e de uma agenda de luta comum pela soberania alimentar, incluindo a resistência aos Tratados de Comércio Livre (TCLs).

A peça que se segue é uma edição da entrevista (aqui a versão integral) com Benjamín Macas, em formato híbrido, que combina transcrição de texto com vídeos. Por isso, para uma melhor experiência de leitura, recomendamos a visualização dos vídeos, na ordem proposta na página, uma vez que são complementares ao texto.
O que são, a partir da tua experiência, os Tratados de Comércio Livre (TCLs)?
São instrumentos para fazer negócios, forjados no seio da política imperial para subjugar, despojar os povos e saquear a Natureza. Caracterizam-se por terem uma parte visível, propagandista, virada para o mundo dos negócios, para o crescimento, e que promete benefícios para o país. Mas possuem igualmente uma parte oculta, que é difícil de entender: são instrumentos de desvio de poder através do qual o Estado deixa de ser um ator social de regulação para se tornar num verdadeiro guardião dos interesses privados do capital, tanto transnacional como nacional.
Em 1994, quando o México assinou o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (TLCAN/NAFTA) com os Estados Unidos e o Canadá, o milho híbrido barato dos Estados Unidos entrou maciçamente no país com o levantamento das barreiras tarifárias. E isso esmagou os povos do México, provocou a sua falência, a saída maciça de camponeses e indígenas para as cidades e para os próprios Estados Unidos.
Para além disso, estes tratados eliminam direitos sociais, direitos ambientais, e isso significa que podem acelerar a morte de territórios devido a atividades extrativas indiscriminadas, como é o caso da exploração de metais, que é algo que estamos a sofrer no Equador.
Quais foram os TCLs assinados pelo Equador?
O primeiro a ser assinado é o tratado com a União Europeia (UE), em novembro de 2016. Entra em vigor a 1 de janeiro de 2017. Este tratado teve um longo período de negociação, que remonta a 2008, mais ou menos. Também porque houve resistência à sua assinatura. Já são 9 anos de implementação. Também foi assinado um tratado com a Inglaterra, penso que foi por volta de 2022 ou 2023. Finalmente, foi assinado um novo acordo de comércio livre com a China, em janeiro de 2024. [O Governo] também está a discutir a assinatura de um novo tratado com o Canadá.
Nestes nove anos de vigência do acordo com a União Europeia, quais foram os setores mais afetados?
O tratado reforçou a tradicional matriz primário-exportadora da economia equatoriana e não contribuiu para a diversificação produtiva, ou seja, está a reduzir a produção. Há uma brochura produzida pelo OCARU, o Observatório de Conflitos Rurais, que tenta ver qual o efeito que está a ter e aponta algumas das tendências que estão a ocorrer na agricultura [continuação no vídeo a seguir].
Podes explicar o que significa este carácter primário-exportador da economia equatoriana?
O Equador é, há muito, uma economia primário-exportadora, assente na exportação de cultivos fundamentais: antes o cacau, agora a banana. E, nos últimos 50 anos, o petróleo. O petróleo está a acabar, e estamos prestes a tornar-nos compradores. [O Governo] procura extrair minerais para substituir essa fonte de rendimento. O que vemos é como a superfície das culturas agro-exportadoras continua a crescer e torna-se uma grande ameaça à pequena indústria, à indústria de transformação do país.
Que implicações tem esta expansão da agro-indústria de exportação para os territórios, a Natureza e as pessoas?
As bananas têm sido um dos principais produtos de exportação. São produzidas na bacia hidrográfica do rio Guayas, geram concentração de terras e água, utilizam quantidades elevadas de agro-químicos e de materiais nocivos como os plásticos. E exploram a mão-de-obra. A cultura do camarão tem crescido muito no país. No início, dava-se sobretudo nas zonas junto ao mar, mas agora está a expandir-se para o interior da Costa1, seguindo o curso de alguns rios, o que causa concentração de terras e destrói a floresta de mangue.
E isso está a criar um conflito de desapropriação de terras e proletarização dos povos indígenas e camponeses, que são obrigados a trabalhar para as empresas que para ali chegam. Toda esta expansão implica a destruição da natureza, para nós Pachamama, como fonte de vida. Por isso dizemos que exportar o agro-negócio é exportar a Natureza. As nossas florestas, as nossas matas, parte dos nossos rios.

Marcha em defesa da água contra o avanço da mineração de metais (Loja, Equador)
Mencionaste que os TCLs são mais do que acordos sobre tarifas alfandegárias. Como vês a sua relação com o setor da mineração? [resposta no vídeo a seguir]
Dentro e fora do Equador, quem são os verdadeiros beneficiários dos TCLs?
São os capitais nacionais, os agro-exportadores, que estão interessados em assinar estes tratados. A par do agro-exportadores há também importadores, porque os produtos transformados da Europa entram sem taxas alfandegárias. Há vários domínios relacionados com a maquinaria pesada, a maquinaria industrial e os produtos farmacêuticos. Durante as negociações vê-se que também há pressões do exterior, da União Europeia ou da China, para condicionar a produção. Os beneficiários externos são mais difíceis de identificar. Podemos ver capitais transnacionais em torno da liberalização dos serviços, da privatização de bens sociais comuns como a saúde e a educação. Este processo de privatização também está a avançar na contratação pública. A Constituição diz que os concursos públicos deve dar preferência à economia social e solidária, ou seja, às PME [Pequenas e Médias Empresas], à pequena produção. O capital entra e disputa o fornecimento de contratos públicos ao Estado em condições de elevada assimetria.
O TCL com a União Europeia foi assinado durante o Governo da Revolución Ciudadana, parte da esquerda progressista, e no qual ocorreu o processo constituinte de 2008. Achas que as políticas públicas deste Governo marcaram de facto uma rutura com décadas de política neoliberal? Ou existem continuidades nesse processo?
Na década de 70 [do século passado], [o neoliberalismo] começou a ser aplicado na América Latina como resposta à crise de baixas taxas de acumulação do capital. O objetivo foi liberalizar as economias para fazer do mercado um motor de crescimento e um regulador da sociedade. Há uma procura de novas fronteiras de acumulação, uma delas é também a transformação da agricultura camponesa em agricultura de mercado e de exportação.
Foi precisamente a aplicação das reformas neoliberais que deu origem às poderosas mobilizações indígenas dos anos 90, que abalaram a estrutura política do país e permitiram certas conquistas. A força mobilizadora do movimento social tornou possível o surgimento da chamada Revolución Ciudadana. Essa mobilização social mobiliza-se durante a assembleia constituinte e surge um processo de enorme entusiasmo social, e enormes expectativas numa nova Constituição. A Constituição amplia direitos coletivos e inclui novos aspetos como a soberania alimentar, os direitos da Natureza, e o fortalecimento da economia social e solidária. As políticas públicas, sobretudo os subsídios, permitem a redistribuição de determinados recursos para a população e uma ampliação da base social que tem acesso ao consumo, com um crescimento da classe média, da pequena burguesia.
E depois começou a haver alguns retrocessos nesta posição, que nós aqui no país estamos a tentar caraterizar como uma posição social-democrata, que gera expectativas, que incorpora alguns elementos keynesianos de gestão económica, mas que depois vai recuando gradualmente ao ponto de, no final do período de 10 anos do governo de Rafael Correa2, ter sido assinado o primeiro TCL, em novembro de 2016. Este período termina com a ascensão do presidente Moreno3, que se afasta definitivamente deste processo da Revolución Ciudadana e acaba por ser novamente um governo de direita, com um regresso ao neoliberalismo.
Defesa dos pântanos ferríferos de Urco, ameaçados pela mineração de metais a céu aberto
A partir de um olhar camponês, da agricultura familiar e da agroecologia, como avalias as políticas públicas da Revolución Ciudadana para o setor agrícola?
Surgem programas de apoio aos setores populares, mas isso dura pouco tempo porque a política agrária volta a apoiar o agro-negócio, um setor político muito forte no país. E, mais uma vez, tentaram promover a participação de camponeses no mercado. Surge nova legislação mais alinhada com os TCLs, como a Lei das sementes ou o famoso código de gestão do conhecimento, que é uma forma de privatizar o conhecimento ancestral. A legislação tende cada vez mais a subordinar os camponeses ao agro-negócio, a essas cadeias de valor e à agro-exportação.
Que setores sociais enfrentaram o TCL com a União Europeia?
Houve no país um forte processo de resistência à ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas, uma proposta promovida pelos Estados Unidos que pretendia criar um tratado único com todos os países da América Latina. Ocorreu uma confluência muito ampla de sectores, porque a informação que é fornecida sobre os TCLs é também ela ampla. Mobilizaram-se setores de todos os estratos sociais: trabalhadores/as urbanos, académicos/as, estudantes, camponeses, indígenas. E juntaram-se os pequenos empresários, incluindo os empresários médios, porque lhes foi explicado o que os TCLs representam [continuação no vídeo a seguir].
Gostaria que partilhasses um pouco da vossa experiência de resistência aos TCLs dentro da Confederação Camponesa Agroecológica do Equador (CCAE) e da Rede Agro-ecológica de Loja.
Começámos por tentar compreender o que são os TCLs. E também temos enfrentado a legislação anti-camponesa que se desenvolve no âmbito dos TCLs. A Lei das sementes, que creio ter sido aprovada em 2017, obriga à utilização de sementes certificadas, uma das questões ligadas à propriedade intelectual. Depois, há uma Lei sobre saúde e segurança agrícola que, por um lado, promove a utilização de pesticidas e, por outro lado, promove normas sanitárias para o manuseamento de animais que não são aplicáveis aos pequenos produtores, e que se tornam fatores de exclusão. Estas são as normas do agro-negócio, que pretende vê-las aplicadas aos pequenos produtores. Não há condições para isso. A Constituição diz que deve haver regras diferenciadas, mas isso não está a ser feito. Na confederação estamos a fazer um exercício de denúncia e lutamos contra essas Leis. Estamos a tentar garantir que os princípios constitucionais não sejam violados, que os direitos dos camponeses sejam respeitados. E também somos uma organização que promove a agroecologia e os mercados locais, num contexto difícil, mas que pouco a pouco vai gerando solidariedade.
No caso do Equador, qual é a importância da agricultura camponesa e familiar para a soberania alimentar e o abastecimento do mercado interno do país? [resposta no vídeo a seguir]
Quão importante é formar alianças transatlânticas para fazer frente a estes tratados e travar os efeitos que, como tu mencionaste, serão muito mais visíveis e preocupantes com a liberalização total o mercado? [resposta no vídeo a seguir]
1 O Equador está dividido em quatro regiões geográficas: Costa, Serra, Amazónia e Galápagos.
2 Presidente da República do Equador (2007-2017)
3 Presidente da República do Equador (2017-2021)
Para saber mais
Acción Ecológica e Instituto de Estudios Ecologistas del Tercer Mundo. 30 años de Libre Comercio. Rehacer las Américas para el Capitalismo Global. 2024