Resistência e Resiliência:

Mulheres na Luta pela Terra e Territórios contra o Neocolonialismo em África e no Caribe

Jessica Fernandez, investigadora Garífuna, diplomata na Missão Permanente da República das Honduras na ONU. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra. Candidata a doutora em Estudos de Desenvolvimento

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A luta por terras e territórios em África e no Caribe representa uma resistência constante contra o colonialismo como sistema de dominação que progrediu, mas que não desapareceu, tendo-se transformado no neocolonialismo. Este conceito tem sido abordado por pessoas líderes de lutas, autores e autoras do sul global, como Kwame Nkrumah, no Gana; Amílcar Cabral, em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, Walter Rodney, na Guiana, e complementado por autores do Caribe como Frantz Fanon, Sylvia Wynter, entre muitos/as outros/as. Cada um/a deles/las tem desenvolvido perspetivas diversas sobre como este sistema funciona e como afeta as sociedades, sobre o impacto que tem, em particular, nas mulheres e nos territórios. É assim que este sistema se pode descrever como uma forma moderna de controlo e de exploração, que mantém as dinâmicas de poder do colonialismo tradicional, agora dissimulada sob a fachada de investimento estrangeiro, de crescimento e de desenvolvimento económico.

Neocolonialismo e Desapropriação de Terras e Territórios

O neocolonialismo, segundo Kwame Nkrumah, é o controlo indireto que as antigas potências coloniais mantêm sobre os países supostamente independentes, através de influências principalmente económicas, políticas e culturais. Frantz Fanon aprofundou como o sistema colonial afeta profundamente as pessoas, tanto a nível individual quanto coletivo e as consequências psicológicas e sociais, apontando como este sistema perpetua o racismo a exploração e a desigualdade. Após a Segunda Guerra Mundial, a ideia de desenvolvimento impôs-se como uma doutrina padrão, promovida pelos países colonizadores através de organizações internacionais e bancos multilaterais. Este modelo de desenvolvimento, baseado no comércio global e no crescimento económico sem fim, beneficiou principalmente um pequeno grupo de pessoas e empresas que controlam a economia global, enquanto as desigualdades no mundo aumentaram.

Assim, tal como no colonialismo tradicional, o controlo neocolonial manifesta-se especialmente na apropriação de terras e territórios, através da interferência nas políticas internas dos países do sul global e do investimento estrangeiro, que se traduz na presença de indústrias extrativas multinacionais. Estas práticas afetam diretamente as comunidades locais, especialmente as mulheres camponesas, afrodescendentes e indígenas.

Para muitas comunidades ao redor do mundo, a terra não é apenas um recurso económico ou produtivo, é também um recurso fundamental de identidade, cultura e soberania. Assim mesmo, a compreensão do território inclui não só a terra física, mas também o espaço sociocultural, que representa a continuidade das formas de vida e tradições de povos e comunidades. Além disso, representa o equilíbrio da biodiversidade e a saúde através das plantas medicinais existentes nos territórios e a capacidade de produzir os seus próprios alimentos. Nesse sentido, o termo terra, que costuma referir-se mais ao seu valor económico e produtivo, é compreendido como um espaço de libertação, de autonomia e de exercício livre de práticas, além de ser um espaço onde se desenvolvem e transferem conhecimentos vitais para a soberania alimentar e a autodeterminação. Portanto, as consequências do neocolonialismo afetam não apenas a sustentabilidade, mas também têm implicações na saúde e bem-estar das populações.

Daí a importância de aprofundar a compreensão do neocolonialismo a partir de uma perspetiva holística, transversal e interseccional, uma perspetiva que analise os efeitos diretos sobre os grupos e comunidades que foram profundamente afetados pelo colonialismo e que, sem nenhum processo de reparação, são agora afetados em maior proporção pelo sistema neocolonial. Esta análise interseccional deve abordar diretamente como este sistema afetou as mulheres, camponesas, afrodescendentes e indígenas, incluindo a transversalidade de género, raça e classe. Este aspeto é fundamental para compreender de maneira mais direta as lutas contemporâneas pela terra e pelo território.

Mulheres, luta, terra e território no Caribe e África

1“Commodities” refere-se aos produtos primários, que têm baixo valor no mercado mundial e cujo preço, regra geral, é decidido em bolsas mundiais.

Nesse contexto, é importante lembrar a conexão indivisível entre África e o Caribe, onde ocorreram invasões de territórios e o sequestro de pessoas africanas para serem levadas para os territórios caribenhos para trabalhar forçadamente em plantações. Esta ideia das plantações, desenvolvidas sob o sistema de trabalho forçado, violência e exploração, constitui um exemplo claro do que o neocolonialismo representa. As pessoas de origem africana foram consideradas e tratadas como “commodities”1 para alcançar os processos de industrialização do mundo ocidental, tal como descreve Sylvia Winter (2003). Nos territórios ocupados pelos impérios coloniais, desenvolviam-se as atividades que sustentavam e continuam a sustentar até hoje as dinâmicas de exploração norte-sul. Estas assimetrias refletem-se na forma como os ditos países em desenvolvimento continuam a fornecer os insumos para os níveis de vida insustentáveis no norte global, à custa da degradação da biodiversidade, violações dos direitos humanos e conflitos sociais e políticos. Por esta razão, é importante analisar diversas dinâmicas presentes na conceção do neocolonialismo que, além da desterritorialização, devem também envolver discussões sobre a escravatura, racismo e género.

Neste sentido, é importante compreender como este sistema funciona a partir de exemplos de povos e nações que têm sido afetados historicamente, como é o caso do Haiti. Primeiro país a alcançar a independência da dominação colonial em 1804, o Haiti continua a enfrentar as consequências da sua ousadia e tem sido alvo de intervenções internacionais, sanções e controlo político que desestabilizaram o país e minaram a sua soberania, o que tem provocado instabilidade política, social e económica. A intervenção estrangeira e os projetos de desenvolvimento impostos levaram ao despojo de terras dos/as camponeses/as e à dependência económica, derivando numa profunda crise de violência. As políticas neoliberais e os acordos de livre comércio, como a Parceria Comercial da Bacia do Caribe, permitiram a introdução de produtos subsidiados estrangeiros que destruíram a agricultura local, aumentando a pobreza e a desigualdade. Frente a isso, movimentos camponeses no Haiti continuam a luta pela terra e pelo direito a cultivar.

Um outro caso interessante de resistência no Caribe é o do povo Garífuna, símbolo de resistência contra os negócios extrativos e os monocultivos que ameaçam os nossos territórios ancestrais. Os Garífunas, descendentes de africanos e indígenas do Caribe, lutaram historicamente contra a invasão colonial de ingleses e franceses no século XVII e agora, no Caribe da América Central, continuam a luta para manter os territórios ancestrais frente à expansão de projetos turísticos e agroindustriais de empresas canadianas, norte-americanas e europeias. Esta luta não é apenas pela terra física, mas também pela preservação da cultura, língua, espiritualidade e formas de vida. Miriam Miranda, Coordenadora da Organização Fraternal Negra Hondurenha (OFRANEH), destaca a importância desta luta, denunciando o deslocamento forçado: “Estamos a ser deslocados das nossas terras devido à expansão dos empreendimentos turísticos e à avidez pelas nossas riquezas naturais. Esta é uma forma de neocolonialismo que ameaça a nossa existência e identidade como povo”.

No continente africano, há diversos casos de lutas, como é o caso de Moçambique, que se apresenta como um caso emblemático na região Subsaariana. A União Nacional de Camponeses de Moçambique (UNAC), a maior organização de camponeses/as moçambicanos/as, com quase 60% dos seus membros sendo mulheres, luta contra a apropriação de terras por parte de corporações estrangeiras que pretendem estabelecer monoculturas e projetos mineiros. As mulheres camponesas moçambicanas desempenham um papel fundamental na UNAC e no movimento agrário. Elas equilibram a agricultura com outros trabalhos, como domésticas e vendedoras, mostrando uma abordagem multifacetada para sustentar suas famílias. Nesse sentido, UNAC unifica esforços para defender os direitos à terra, destacando-se pela sua força coletiva na defesa da terra (Monjane, 2023).

Neste caso, a maioria das pessoas que trabalham e produzem a terra são mulheres, que enfrentam uma dupla carga de exploração laboral e opressão de género. Por outro lado, na África do Sul, a luta é diferente porque a distribuição desigual da terra é um legado direto do apartheid, que, por sua vez, é uma extensão do colonialismo. Aí, apesar da independência política, a terra continua concentrada nas mãos de uma minoria branca, enquanto a maioria negra, incluindo as mulheres, continua a lutar pelo acesso equitativo à terra.

2 Women on Farms Project (WFP) É uma organização feminista sul-africana que opera nas províncias do Nortern and Western Cape, trabalhando com mulheres que vivem e trabalham em quintas comerciais. Ver mais aqui.

3 A Organização Fraternal Negra de Honduras trabalha para proteger a cultura e o território Garífuna contra as ameaças aos direitos humanos e ao meio ambiente que a imposição de projetos económicos representa.

Em todos estes casos, as mulheres desempenham um papel crucial na luta pela terra e pelo território. Em Moçambique, Mariam Mayet é uma destacada ativista que defende os direitos das mulheres camponesas e o seu acesso à terra. Na África do Sul, a organização Women on Farms Project2 trabalha para melhorar as condições laborais e de vida das trabalhadoras agrícolas; nas Honduras, a OFRANEH3, apesar da situação de instabilidade e violência no país, existem movimentos e organizações que estão a defender os direitos dos camponeses, nomeadamente, das mulheres camponesas. Como a organização Solidarite Fanm Ayisyèn (SOFA) que defende os direitos à terra das mulheres agricultoras, onde também opera uma Escola de Agricultura Orgânica que apoia mulheres na agricultura.

O neocolonialismo afeta diretamente a posse de terras e territórios, especialmente para as mulheres, que têm uma conexão direta com as suas comunidades e com a terra, e que são as principais responsáveis pela agricultura e pela soberania alimentar. Tal como sublinha a Via Campesina, relativamente à importância da soberania alimentar, que implica o direito dos povos a definir as suas próprias políticas agrícolas e alimentares sem ingerência de nenhum tipo.

Conclusão

O extrativismo e a exploração dos recursos naturais no sul global perpetuam a pobreza e a dependência. As comunidades sem terra e território são forçadas a trabalhar em condições de exploração para as multinacionais, enfrentando violações de direitos humanos e os efeitos das mudanças climáticas. Os governos locais, pressionados pela necessidade de manter as suas economias a funcionar e cobrir os gastos públicos, muitas vezes cedem aos interesses das empresas estrangeiras, facilitando a ingerência em assuntos políticos e económicos.

Desde África até ao Caribe, as comunidades oferecem alternativas à primazia do mercado proposta pelo sistema neoliberal. Organizações, movimentos e comunidades priorizam a justiça social, a proteção dos direitos humanos e a harmonia com a natureza, contrastando com a visão neoliberal (Fernandez Norales, 2017) que coloca esses valores em segundo plano em prol do lucro económico.

A luta pela terra e pelo território é uma luta pela sobrevivência, dignidade e justiça. É uma resistência contra um sistema que, sob novas formas, continua a impor as mesmas dinâmicas de exploração, violência, racismo e exclusão que caracterizaram o colonialismo. A defesa da terra e do território é, em última análise, a defesa da própria vida. Esta luta é especialmente crucial para as mulheres em África e no Caribe, que não só sustentam a agricultura e a soberania alimentar, mas também são guardiãs da cultura, identidade e resiliência comunitária. As histórias de resistência dos/das Garífunas, dos/das camponeses/as haitianos/as, e das mulheres em Moçambique e na África do Sul destacam a importância de uma perspetiva interseccional que aborde género, raça e classe na luta contra o neocolonialismo e pela justiça social e ambiental.

Referências bibliográficas

1. Nkrumah, K. (1965). “Neocolonialism: The Last Stage of Imperialism”. London: Thomas Nelson & Sons.
2. Fanon, F. (1961). “The Wretched of the Earth”. New York: Grove Press.
3. Wynter, S. (2003). Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation—An Argument. “CR: The New Centennial Review”, 3(3), 257-337.
4. Chomsky, N. (1999). “Profit Over People: Neoliberalism and Global Order”. New York: Seven Stories Press.
5. Fernández Norales, J. (2017). Descolonizar el desarrollo: ideas de desarrollo desde los publos afro indígenas en Latinoamérica. En C. Olivieri y A. Ortega Santos. (Eds.), Decolonizando Identidades. Pertenencia y Rechazo de/desde el Sur Global (pp. 145-155). Granada, España: Instituto de Migraciones [ISBN: 978-84-921390-5-7]
6. La Vía Campesina. (2010). “Food Sovereignty: A Manifesto”. Disponível aqui.
7. Monjane, B. (2023).  Resisting agrarian neoliberalism and authoritarianism: Struggles towards a progressive rural future in Mozambique. J Agrar Change, 23(1), 185–203.
8. UNAC. (2021).

Para saber mais

Sobre a luta pela biodiversidade, ver o African Centre for Biodiversity, de que Mariam Mayet faz parte.

Campanha “Double Standards” da Women on Farms Project