Solo político
João Ruivo
Fotos: João Ruivo (à exceção da última)
Tempo aproximado de leitura: 15 minutos
O Solo como arquivo
O arquivo colonial de solos encontra-se alojado na Pedoteca em Lisboa, um termo que designa uma biblioteca pedológica, ou biblioteca de solos. As amostras de solo e relatórios das missões pedológicas estão reunidas no Instituto Superior de Agronomia (ISA) em Lisboa, tendo sido transladadas da extinta Junta de Investigações Científicas do Ultramar, a agência colonial que operou até ao derrube do regime em Abril de 1974. A minha primeira visita à Pedoteca ocorreu enquanto realizava pesquisa sobre a pratica cientifica de Amílcar Cabral, o teórico e líder político do movimento revolucionário anti-colonial PAIGC. Cabral estudou agronomia no ISA entre 1951-53, onde realizou uma tese que abordava a erosão do solo na região da Cuba, no Alentejo1. A tese apontava as causas da erosão não como um problema do foro estritamente ambiental, mas sim o resultado de um longo processo de expropriação da terra, que tinha no latifúndio um dos agente principais2.
Pouco tempo depois de completar os estudos em Agronomia, Cabral incorporou três missões pedológicas em Angola, entre 1954-56, onde colaborou na extração de algumas das amostras de solo que se encontram atualmente arquivadas e expostas na pedoteca3. A trajetória académica e profissional de Cabral, de cientista de solos ao serviço das agências coloniais do Estado Novo no Alentejo e em Angola, e a subsequente liderança das lutas anti-coloniais em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, é paradigmática das interconexões políticas presentes nos materiais depositados no arquivo de solos.
1 Amílcar Lopes Cabral, “O problema da erosão do solo. Contribuição para o seu estudo na região de Cuba (Alentejo)” (bachelor Thesis, ISA-UTL, 1951).
2 A leitura no presente da dedicatória “Aos jornaleiros do Alentejo – trabalhadores da terra dos latifúndios, homens de vida incerta que a erosão ameaça. À Mãe-Iva”, é evocativa da condição actual de trabalho precário nas plantações de monoculturas, com a diferença de que o regime de propriedade do latifúndio serve agora de ventre para o lucro de sociedades financeiras de investimento. Embora camufladas sob identidades múltiplas, uma investigação em 2020 revelou que seis empresas multinacionais, a Elaia, a De Prado, a Aggraria, a Olivomundo, a Innoliva e a Bogaris, detinham uma quota de 65% dos 56 mil hectares de olivais plantados nos perímetros do Alqueva. Paulo Barriga, “Grande Investigação: O lado negro do negócio dourado do azeite,” Sábado, January 23, 2020.
3 De acordo com o testemunho de um dos seus colegas R. Pinto Ricardo, Rui Pinto Ricardo (Depoimento, 2013), Lisboa: IICT, 2014

Espaço central da pedoteca no ISA, em Lisboa. À direita, o conjunto de monólitos extraídos do Alentejo. Agosto 2016.
Localizada no piso semi-enterrado da Universidade, a pedoteca dispõe uma coleção de solos representativos do território nacional, em conjunto com amostras extraídas de territórios que se encontravam sob ocupação colonial por altura das missões. O arquivo pedológico compreende uma série de perfis verticais rodeados de corredores preenchidos a toda a altura com amostras de solo retiradas a diferentes profundidades, e contém mais de 30.000 amostras de solo recolhidas ao longo das décadas finais da ditadura fascista e de ocupação colonial. Para além de uma etiqueta indicativa da origem e classificação taxonómica aplicada pelos pedologistas, as múltiplas histórias e lutas políticas que atravessaram estes solos são ilegíveis na forma de apresentação das amostras.

Vista interior de dois espaços da Pedoteca, preenchidos com amostras de solo. Agosto 2016.
No centro do espaço estão dispostas a coleção de monólitos extraídos entre as décadas de 1950-60 de Angola e do Alentejo, dois territórios que foram avaliados na altura como propícios à implementação de projetos extrativistas, e à expansão da presença colonial através da agricultura de irrigação4. Em ambos os casos, coincidentes com modelos de ocupação territorial baseada em estratégias de colonização por assentamento, que obrigavam invariavelmente à expulsão das populações autóctones para dar lugar à instalação de famílias de colonos originários da metrópole. Estas colónias agrícolas das quais Pegões é um dos exemplos paradigmáticos foram primeiro testadas no Alentejo, através do denominado processo de colonização interna, antes de serem transplantadas para os territórios ocupados nas planícies do Kwanza Sul, em Angola5.

4 Uma avaliação que tinha por base uma visão ideológica que remonta ao século anterior: “Nos finais do século XIX, foram dois os discursos míticos que se constituíram como destino nacional: o de África e o do Alentejo”. Em Paulo Eduardo Guimarães, “Conclusão: Para a Compreensão Da Acção Das Elites Económicas No Alentejo Contemporâneo,” in Elites e Indústria No Alentejo (1890-1960) : Um Estudo Sobre o Comportamento Económico de Grupos de Elite Em Contexto Regional No Portugal Contemporâneo, Biblioteca – Estudos & Colóquios (Publicações do Cidehus, 2019).
5 Assentes num modelo de agricultura de subsistência, estes colonatos modelo pretendiam reproduzir as relações sociais de ruralismo individualizado que estavam a ser incentivadas na metrópole. Ver Cláudia Castelo, “Reproducing Portuguese Villages in Africa: Agricultural Science, Ideology and Empire”, Journal of Southern African Studies 42, no. 2 (2016): 267–81.
Vista interior da Pedoteca. Do lado direito um mapa com o título “Cunene – Região do Capelongo. Carta de Aptidão para Regadio”, datado de 1951. Agosto 2016. No detalhe do mapa é possível vislumbrar as áreas designadas para irrigação – A1 – ocupando as terras baixas entre as Sanzalas e o curso do rio Cunene. Através deste plano, as populações não seriam imediatamente deslocadas, mas perderiam o acesso direto ao rio, assim como às terras melhores para o cultivo.
O horizonte do solo
Embora frequentemente reduzido à palavra “terra”, o solo não é uma entidade plana, unidimensional, e homogénea, mas um corpo vivo em constante mutação. As propriedades dos solos, que se encontram distribuídas de forma desigual pela superfície do planeta, transportam e são em si mesmas constituídas por resíduos de transformações geopolíticas. Na prática da amostragem pedológica, aquilo a que os/as cientistas se referem como um “perfil de solo” indica uma série de camadas ou horizontes de solo paralelos entre si, visíveis na superfície contínua do solo em secção vertical6. Esta arquitetura tridimensional armazena e organiza os resíduos materiais de eventos no passado, registando simultaneamente em tempo real os efeitos da exposição ambiental do solo, incluindo eventos geológicos e atmosféricos, variações climáticas, e intervenção humana. Cada perfil vertical é um registo contínuo da evolução estratificada da superfície da Terra ao longo do tempo. Da perspetiva dos estudos do solo, esta superfície não é uma fronteira abstrata, mas antes uma entidade tridimensional de profundidade variável, que contém histórias divergentes.

Coleção de monólitos de solo extraídos de Angola entre 1946-74, em exibição na Pedoteca. Agosto 2016.
6 Esta distribuição vertical foi descrita pela primeira vez em termos pedológicos por Hans Jenny, que definiu o solo como uma “entidade anisotrópica”. Ver Hans Jenny, Factors of Soil Formation: A System of Quantitative Pedology, McGraw Hill Publications in the Agricultural Sciences (McGraw-Hill, 1941). p.3
7 Perrin Selcer, “Fabricating Unity: The FAO-UNESCO Soil Map of the World,” Historical Social Research / Historische Sozialforschung 40, no. 2 (152) (2015): 174–201
Os solos presentes nos monólitos expostos no ISA são o culminar de um projeto político, e a sua constituição material é derivada de uma série de complexos processos tecno-científicos, que informam e são informados por decisões políticas que surtem efeitos a diferentes escalas. No caso específico estas amostras de solo integravam um projeto global de censos agrícolas coordenado por duas agências das Nações Unidas, a Food and Agriculture Organization (FAO) em conjunto com a Unesco. Através da adoção de uma metodologia comum de classificação acordada entre as diversas entidades nacionais, as pesquisas conduziram à sincronização de nomenclaturas científicas de solo, que foi publicada na Primeira Legenda do Mapa de Solos do Mundo, em 19747.

Carta de perfis de solo “Soils of the World”, publicada pela FAO UNESCO em 1982, exposta na escadaria de acesso à cave da pedoteca. Agosto 2016.
Os solos abrangidos por este projeto global foram invariavelmente transformados através do aparato estandardizante das taxonomias científicas do solo que foram estabelecidas neste período, e que incluíam informação estatística sobre práticas agrícolas, populações, e dos ambientes rurais onde crescia a resistência contra a ocupação imperialista. Os levantamentos conduzidos por cientistas ao serviço do Estado Novo nos diferentes territórios sob administração colonial estavam igualmente inseridos num projeto de reconstrução integral do ambiente levado a cabo após a Segunda-Guerra Mundial, que tinha como objetivo a redireção da indústria militar para a agricultura, inaugurando assim uma nova fase do complexo agro-industrial que havia sido interrompida entre as duas grandes guerras mundiais8.
Este projeto imperialista procurava garantir a continuidade dos domínios coloniais, através de políticas de gestão ambiental divergentes que visavam por um lado a conservação de habitats, e por outro a intensificação do uso do solo. Em ambos os casos, implicaram uma profunda reorganização territorial e uma transformação irreversível dos ecossistemas.
Foi também neste período que surgiu a chamada “Revolução Verde”, um programa financiado nos Estados Unidos pelas Fundações Ford e Rockefeller para promover a homogenização da agricultura a uma escala global. Projetando a expansão da monocultura industrial como única alternativa para combater a escassez, o programa promoveu a substituição de práticas agrícolas de escala local pela fórmula semente-fertilizante produzida em laboratório que ficou conhecida como NPK, em referência aos macronutrientes das plantas: azoto (N), fósforo (P) e potássio (K)9. Dissimulada pela teoria Malthusiana do excesso populacional, que defendia a necessidade de aumentar a produção de alimentos para sustentar uma população global crescente, a desestabilização dos ecossistemas da resistência tinha por objetivo estratégico primário desarticular os movimentos revolucionários – muitos de inspiração Marxista, logo, vermelhos – que se começavam a organizar contra o domínio colonial10.
O ecocídio foi a arma de guerra das potências coloniais que procuravam liquidar a resistência política através de um ataque direto ao ambiente, tendo na modificação dos solos um dos seus veículos principais. Partindo do pretexto de otimizar o uso de solos férteis que os colonos reclamavam como desaproveitados pelas culturas locais, a destruição de florestas e savanas autóctones em Angola foi uma das táticas militares de contra-subversão aplicadas pelo Estado Colonial português para extinguir as zonas onde as guerrilhas encontravam refúgio11.
Cuando Tenga La Tierra, Mercedes Sosa
8 Um argumento desenvolvido mais a fundo em João Ruivo, “Solos Em Guerra: A Fertilidade Como Arma”, Terra Batida, accessed October 27, 2025.
9 No contexto Português, e apesar de sofrer uma intensificação no período após a Segunda Guerra Mundial, a utilização de fertilizantes sintéticos era já frequente desde o século XIX. Ver Miguel Carmo et al., “The N-P-K Soil Nutrient Balance of Portuguese Cropland in the 1950s: The Transition from Organic to Chemical Fertilization”, Scientific Reports 7, no. 1 (2017): 8111, 10.1038/s41598-017-08118-3
10 As origens políticas do chamado “credo malthusiano” estão entrelaçadas com a ascensão do anticomunismo após a Segunda Guerra Mundial, quando foi introduzido para “inibir a influência das forças revolucionárias em todo o mundo em desenvolvimento”. Em Eric B. Ross, The Malthus Factor : Population, Poverty, and Politics in Capitalist Development (Zed Books, 1998). Embora a teoria de Malthus se tenha tornado central nos discursos geopolíticos que defendem a limitação do crescimento, o argumento de que uma população crescente necessitaria de mais terra foi, sem dúvida, roubada a Ricardo, segundo Marx, que afirmou que “toda a sua [de Malthus] teoria populacional é um plágio descarado”. Para uma breve genealogia da teoria de Malthus à data da sua publicação, ver Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy / Vol. 1, with Ben Fowkes and David Fernbach (Penguin Books in association with New Left Review, 1990). p.524, fn.246
11 Por outro lado, a florestação também foi utilizada como arma colonial em outros contextos. Sob o pretexto de florescer o deserto, a plantação de florestas financiada pelo Jewish National Fund (JNF) desde 1901 nos territórios ocupados da Palestina tem contribuído gradualmente para a acidificação do solo. Ver Eyal Weizman, Hollow Land: Israel’s Architecture of Occupation (Verso, 2007). p.121. A implantação de mais de 250 milhões de pinheiros de Alepo eliminou todas as outras formas de vegetação autóctone, destruindo as condições para a permanência de comunidades transumantes. Segundo testemunho direto do exército Israelita, as florestas foram plantadas para cobrir intencionalmente os vestígios de povoamentos palestinianos. Ver Liat Berdugo, “A Situation: A Tree in Palestine,” Places Journal, ahead of print, January 7, 2020, https://doi.org/10.22269/200107.
Materialismo pedológico
Partindo do reconhecimento destes processos históricos, deixa de ser possível falar do solo como um elemento natural. O solo é uma matéria política, e um arquivo material. Quer se encontrem em pousio ou abandono, os solos são o produto resultante de ação antropogénica, uma vez que foram expostos direta ou indiretamente aos efeitos da presença e ação humanas ao longo do tempo. No seu presente estado não é fácil discernir o solo alterado do material originário. Em conjunto com outras alterações ambientais, estas modificações estão inscritas no solo, formando parte integral da sua composição mineral, química, e biológica. Estes processos, apelidados pelo complexo agro-industrial como “melhoramentos” do solo, implicam igualmente uma degradação contínua dos meios envolvidos, em particular das propriedades do solo.
Como observou Marx na incepção da industrialização da agricultura no século XIX, derivado da aplicação continuada de inputs químicos no solo, há instâncias em que a terra como capital pode desaparecer, mas os “melhoramentos” permanecem na terra12. Este processo levou-o a distinguir entre o conceito de “Terre matière“, ou terra matéria, e “Terre Capital“, terra capital. Por outras palavras, enquanto que a terra como capital pode diminuir pela exaustão de certos elementos (nutrientes) essenciais para sustentar a sua fertilidade, os resíduos tóxicos destas operações de incorporação de capital (químico, mecânico) permanecem no solo enquanto passivo ambiental.
Resultante de séculos de exploração colonial e depredação ambiental, estes chamados melhoramentos constituem um dos elementos de uma assemblagem tecno-científica, e estão incorporados nas propriedades minerais e orgânicas do solo através de um ciclo metabólico que inclui a ação de agentes sintéticos utilizados na prática da monocultura industrial, em particular os fertilizantes químicos e os diferentes pesticidas, que incluem herbicidas, fungicidas, inseticidas, acaricidas, muitos dos quais foram desenvolvidos primariamente como armas químicas13.

Pormenor de monólito de solo extraído da região de Malange, Angola, revelando vestígios de uma ossada de origem desconhecida, em exibição na Pedoteca. Agosto 2016

Amostra de solo da região de Cuanza-Sul, extraída de Angola em 1961, armazenada na Pedoteca Agosto 2016.

Pormenor de monólitos de solo extraídos do Alentejo, entre 1946-74, em exibição na Pedoteca Janeiro 2019.
12 “Os melhoramentos na terra precisam de reprodução e manutenção; duram apenas algum tempo. Nisso têm em comum com todas as outras melhorias utilizadas para transformar a matéria em meios de produção. A terra como capital é capital fixo; mas o capital fixo esgota-se tanto como o capital circulante.” Em The Poverty of Philosophy, in Karl Marx, Early Texts, trans. David McLellan, Blackwell’s Political Texts (Blackwell, 1971).
13 Um dos exemplos mais famosos é o denominado Agente Laranja, um desfolhante desenvolvido durante a guerra do Vietnam para eliminar a folhagem florestal. A resistência contra a sua aplicação generalizada deu origem ao termo “Ecocídio”, e foi um dos pilares do movimento ambientalista que surgiu a partir da década de 60. Ver David Zierler, The Invention of Ecocide: Agent Orange, Vietnam, and the Scientists Who Changed the Way We Think about the Environment (Athens ; London: University of Georgia Press, 2011). p.114
Uma vez incorporados no solo, estes agentes químicos sintéticos são igualmente uma das causas da sua destruição acelerada. Não são pois, o efeito colateral da degradação ambiental nem o efeito secundário das alterações climáticas, das quais formam parte integral, como demonstram os dados que apontam a agricultura industrial como uma das causas principais do aquecimento global. Os chamados melhoramentos são os meios através dos quais projetos imperiais e coloniais foram materializados historicamente, sustentando e reproduzindo as condições estruturais sob as quais novas formas de gestão neoliberal do solo operam no presente.
É importante pois resgatar a dimensão política da ecologia, contra perspetivas que consideram a luta climática como existindo num plano exterior à política. Reclamar o direito à utilização do solo como bem comum não significa apagar as divisões políticas, que se encontram bem definidas por linhas ideológicas divergentes. No caso do Alentejo, uma região que tem sofrido os impactos decorrentes da expansão gradual do projeto de regadio da barragem do Alqueva, o processo de intensificação do uso do solo tem mobilizado grupos de cidadãos, ativistas, e académicos, na luta coletiva contra o avanço das monoculturas. Reconhecendo a dimensão política destas lutas, é de assinalar que estas transformações ambientais não são o produto de decisões tecnocráticas isentas politicamente, mas sim o culminar de um projeto de irrigação que teve início em 1956 no auge da ditadura fascista, e que encontra agora continuidade material e ideológica na prática extractivista do agronegócio, um modelo económico que não sobrevive fora de um ecossistema de cariz neoliberal. O direito ao solo é a arma possível contra o seu avanço.
Para saber mais
João Ruivo, Soil Politics, site
José Neves, Ideologia, ciência e povo em Amílcar Cabral
Histórias à sombra do Montado, BD
Tiago Saraiva, Black Science: Amílcar Cabral’s Agricultural Survey and the Seeds of African Decolonization

Solo mobilizado para plantação de olival super-intensivo, nas imediações da Cuba, Alentejo. Imagem cortesia de Yannis Drakoulidis, Outubro 2017

