A Declaração de Dakar 2022

Museu das Civilizações Negras, Dakar, Senegal, Outubro 2022

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Apresentamos nesta secção a versão portuguesa de uma declaração que resultou da segunda edição da Conferência Africana sobre Soberania Económica e Monetária, “Enfrentar a crise sócio-ecológica: “Desconectar” e a questão das reparações globais”, que teve lugar em Dakar (Senegal), de 25 a 28 de outubro de 2022. Embora trate da questão mais vasta da soberania monetária, o conteúdo da declaração está intimamente ligado às problemáticas do franco CFA.

A primeira edição da Conferência teve lugar em Tunes, em novembro de 2019, organizada pela Fundação Rosa Luxemburgo, em colaboração com o Instituto Global para a Prosperidade Sustentável – GISP e a rede “Politics of money”. Sob o título “A busca da soberania económica e monetária na África do século XXI: lições a aprender e caminhos a seguir” foi a primeira conferência desta envergadura organizada em África onde se reuniram investigadores/as, ativistas, peritos/as económicos/as, jornalistas e decisores de políticas públicas de África para abordar a questão da autodeterminação económica e política no continente africano, centrando-se no papel do dinheiro e das finanças, e debatendo as vias futuras para assegurar o bem-estar, a justiça social, o emprego e uma vida digna para o povo africano. A terceira conferência terá lugar em Addis Abeba, na Etiópia, em outubro de 2024.

As e os participantes da segunda edição da Conferência, em Dakar, aprovaram uma declaração que sublinha o papel fundamental da solidariedade com as pessoas trabalhadoras, sem-terra, camponesas, as mulheres, ativistas pelo clima e grupos semelhantes em todo o mundo.

A Iniciativa Africana de Soberania Económica e Monetária, ou abreviadamente MES Africa, procura com esta declaração internacionalizar-se ainda mais e construir um movimento no espírito da solidariedade internacional, trabalhando para a abolição das desigualdades globais. Dado o seu conteúdo e posicionamento e com a esperança de contribuir para uma maior divulgação, parece-nos de grande relevância a sua publicação neste número da revista.

No espírito da Declaração de Arusha e da Declaração de Porto Alegre, reunimo-nos em Dakar, vindos de todos os cantos do mundo, para enfrentar um mundo em crise, sob o tema da Soberania Económica e Monetária Africana.

Somos um grupo de académicas/os, decisoras/es políticas/os e ativistas de África, Ásia, Europa e América do Norte, alguns de nós economistas, outros/as cientistas políticos, historiadores/as, sociólogos/as e antropólogos/as. Dirigimos esta declaração aos governos africanos, às instituições africanas e aos atores e agências externas que condicionam a soberania económica e monetária de África.

A nossa atual ordem económica internacional está no centro das crises contemporâneas. O Sul Global sofre de forma desproporcionada com estas múltiplas crises. A forma prejudicial com que a África foi incorporada na ordem capitalista é o problema. Somos parte integrante do sistema que não poderia prosperar sem a nossa exploração. Discordamos do paradigma dominante na economia, que conceptualiza a economia em termos naturalizantes e descreve um mundo benigno, sem relações de poder desiguais.

As nossas crises globais são multifacetadas: colapso climático, perda da biodiversidade, poluição, finança especulativa, guerra e desigualdades desenfreadas. Há uma crise geral da ordem capitalista neoliberal com uma viragem para uma forma resistente de imperialismo. A turbulência geopolítica é um sintoma perigoso de ambos.

Não aceitamos este conjunto de crises. Procuramos e confrontamos alternativas, em solidariedade com as pessoas trabalhadoras, sem-terra, camponesas, as mulheres, ativistas pelo clima e grupos semelhantes. Por estas razões, lançamos a Declaração de Dakar com o objetivo de iniciar uma cooperação duradoura e de confiança com iniciativas e movimentos que partilham o seu espírito.

Dez objetivos estratégicos servem de referência para a nossa ação

1.  A maioria dos nossos governos não implementará as transformações de que necessitamos. Temos de nos tornar as massas que pressionam sempre para mais.

2. No entanto, precisamos de Estados fortes, democráticos e responsáveis. Mas, mais do que isso, precisamos de povos mais fortes para defender esses Estados e pressioná-los para fazerem sempre mais pela maioria da população. Os Estados africanos podem e devem mobilizar mão de obra e recursos africanos para satisfazer as necessidades da África, ressuscitando as ambições de desenvolvimento do início do período pós-independência.

3. Num mundo a separar-se em mais blocos comerciais regionais, construir alianças regionais torna-se necessário e possível. A reafirmação da nossa soberania económica e monetária e a sujeição dos interesses estrangeiros às nossas necessidades e interesses internos torna-se mais fácil. Este aumento de soberania na definição de políticas públicas no sentido de transformar estruturalmente as nossas economias e sociedades pode permitir-nos lidar com questões de longa data como a pobreza, o desenvolvimento social e a democratização.

4. Temos de trabalhar para construir um novo multilateralismo, em que os fóruns e as instituições de política mundial sejam inclusivos, democráticos e reflictam as preocupações das populações do Sul Global.

5. O militarismo e o imperialismo não podem continuar a moldar politicamente o sistema mundial. Defendemos um neutralismo positivo em relação ao histórico bloco colonial-imperial e a não-cooperação com a sua ingerência nos assuntos africanos.

6. As desigualdades globais resultantes do colapso ecológico e da exposição à volatilidade financeira e dos preços das commodities1 colocam o Sul Global numa situação de particular desvantagem que temos de ultrapassar.

7. As crises recorrentes da dívida têm de acabar. Temos de desenvolver uma abordagem global para corrigir o impacto nocivo da dívida excessiva em moeda estrangeira – incluindo a emitida pelo FMI – e das dívidas odiosas. É essencial amortizar a dívida, de forma generalizada, profunda e rápida. Estas amortizações devem ser direcionadas ao apoio à transformação económica.

8. Temos de pôr termo ao roubo contínuo de riqueza, cometido pelas empresas transnacionais (ETN), que flui para o Norte Global quando essas transferem os seus lucros para paraísos fiscais e depois os investem nos mercados financeiros. Tudo isto revestido da linguagem inofensiva de “Investimento Direto Estrangeiro”. Para tal, devem ser ativamente promovidas e aplicadas medidas como controlo de capitais, restrições à evasão fiscal e aos fluxos financeiros ilícitos e uma tributação justa das empresas transnacionais.

9. Temos de combater as desigualdades historicamente persistentes que têm origem no surgimento e na expansão global do sistema capitalista. Precisamos também de uma agenda de reparações para enfrentar de forma justa a complexa crise ecológica. Temos de procurar elaborar tecnicamente esta agenda, legitimá-la, advogá-la, defendê-la e implementá-la. Apoiamos os esforços dos nossos irmãos e irmãs afro-americanos e caribenhos/as nos seus trabalhos específicos em prol da justiça reparadora.

10. Agimos, ensinamos, investigamos e mobilizamos nos nossos contextos locais e nacionais, regionais e transnacionais. Fazemo-lo com o objetivo de construir um movimento duradouro e de ter verdadeira influência nos nossos processos políticos.

2 NT: Manteve-se em inglês porque não há uma tradução consensual para o termo, que se refere aos produtos primários, que têm baixo valor no mercado mundial e cujo preço, regra geral, é decidido em bolsas mundiais.