A marcha da financeirização sobre as terras agrícolas:
a prova-de-conceito do agronegócio no Alentejo
Socializar o risco: investimento público ao serviço de alguns
Nos campos do Sul, no Baixo Alentejo, a paisagem está em plena transformação. Não é a primeira vez que estes territórios testemunham mudança, mas nunca foi tão rápida. Na história recente, a partir da década de 30 do século passado, as Campanhas do Trigo fizeram a monocultura trepar pelas encostas e rapar as charnecas1. Na última década, brotam sebes densas de oliveiras, espaçadas com menos de um metro, sobre os poucos bons solos aráveis e pelas encostas, acima e abaixo, devorando o horizonte, a um ritmo de centenas de hectares por dia. Um rasgão breve de amendoal intensivo quebra um pouco a monotonia do horizonte, mas não por muito tempo, o preço da amêndoa voltou a descer e muitas amendoeiras nem chegaram à altura em que começa o maior volume de produção anual (o “ano cruzeiro”): foram arrancadas para dar lugar à mancha de olival.
Hoje, produzimos duas vezes mais azeite do que necessitamos, quatro vezes mais do que há 20 anos atrás2. As exportações aumentaram dez vezes, mas as importações também subiram significativamente e chegaram a mais que duplicar3. O que se produz por aqui vai, em grande parte, para fora e depois há que importar para satisfazer o consumo interno.
1 A “Campanha do Trigo” refere-se à concretização de um conjunto de políticas da ditadura do Estado Novo que visava aumentar a produção interna de trigo, alicerçada numa ideia de autosuficiência.
2 INE (2025). Estatísticas Agrícolas 2024
3 INE (2025). Importações e exportações (kg) de bens por Local de origem e Tipo de bens (Nomenclatura combinada – NC8); Anual – INE, Estatísticas do comércio internacional de bens
4 As origens do projeto remontam ao Plano de Rega do Alentejo de 1957, que já aspirava irrigar 170 000 hectares de solos na região, meta que foi mantida para a conclusão de uma segunda fase do projeto de Alqueva. Só com fundos externos se conseguiu avançar com a construção da barragem, que fecha as suas comportas apenas em 2002.
5 EDIA (2025). Ocupação cultural
6 ZERO. ZERO apoia diferenciação tarifária proposta pelo Presidente da EDIA e critica posição do Governo, 2025
7 EDIA. Olival em Alqueva – Caracterização e Perspetivas, 2020
8 Jornal de Negócios. Capoulas Santos: “Não há empréstimo mais seguro do que aos agricultores”. O ministro da Agricultura pediu aos bancos para adiantarem dinheiro para investimentos que ultrapassem a dotação anual e tenham aprovação garantida. Ainda há 23 mil candidaturas em lista de espera no PDR 2020, 2016
9 ZERO. Descontrolo na instalação das explorações agrícolas de regadio na área de influência de Alqueva, 2019
10 ZERO. Mais quatro populações de espécies da flora ameaçadas estão a ser destruídas pelo avanço da agricultura intensiva, 2021
11 ZERO. Avaliação Ambiental “faz de conta” tenta legalizar 3.000 hectares de regadio em Alqueva, 2021
12 ZERO. Uso ilegal da água de Alqueva prolifera na área de influência do maior aproveitamento hidráulico do país, 2023
A maior fatia relativa da produção de azeite vem precisamente dos campos irrigados do Alentejo, sobretudo na área de influência do projeto de Alqueva – um empreendimento hidroagrícola coletivo de iniciativa estatal, com uma albufeira de 250 km² e 1100 km de margens (o maior lago artificial da Europa), que irriga uma área de mais de 1300 km²4. Mais de 60% desta área está ocupada por olival industrial, mais de sete vezes a área do Município de Lisboa. Se acrescentarmos apenas mais uma cultura, a do amendoal, 80% da área irrigada por Alqueva é para apenas estas duas culturas5. O projeto em si beneficiou de um investimento público direto de milhares de milhões de euros, sendo que o próprio tarifário da água para rega é subsidiado, quanto mais se usa mais se usufrui apoio público6. Apoios específicos, na ordem das centenas de milhões de euros, jorraram para a cultura do olival, sendo que o poder central fez por dar confiança aos bancos para emprestar aos seus beneficiários, convidando o setor financeiro a ajudar a empurrar o comboio da monocultura do olival 7 8.
O poder local, em muitos municípios, foi fazendo “vista grossa” para as extensas irregularidades que se espalham nos seus territórios: dos atropelos aos planos de ordenamento (classificação do uso e ocupação do solo, faixas de proteção, ordenamento de albufeiras de águas públicas, estrutura ecológica municipal), à destruição de linhas de água e até habitats e espécies protegidas 9 10 11 12.
Fica assim estendido um tapete de boas-vindas. Para quem? Indagamos a seguir.

Conversão de montado em monocultura de regadio antes.

Conversão de montado em monocultura de regadio depois.
Andam gestores de fundos de capital de risco a apanhar azeitona
Mundialmente, os novos investimentos na “agricultura moderna” são feitos com o principal objetivo de maximizar retornos financeiros e de capital e emergem, sobretudo, após a crise de 2008. Para os investidores, as terras agrícolas são agora um “ativo” atraente – a leitura de que o crescente mau estado do solo leva à escassez dos bens que pode providenciar, logo à sua valorização fundiária, especialmente num contexto de aumento populacional. A financeirização não é mais que o acentuar do papel da motivação financeira (maximização do lucro para os investidores), dos mercados financeiros, dos atores e das instituições financeiras no controlo das economias locais e/ou internacionais.
Os fundos de capital de risco de investimento privado – ou private equity – são os mais preponderantes em termos de volume. Antes de 2004 haviam sete fundos focados na agricultura em todo o mundo, em 2020 existiam 300. Quase metade do volume de dinheiro investido está associado a fundos de pensões, ou seja, à gestão das contribuições de trabalhadoras e trabalhadores para sistemas nacionais de pensão e reforma. As/os trabalhadoras e trabalhadores não têm agência sobre as opções de investimento, pelo que o dinheiro pode ser investido sem o seu consentimento13.
Para que o setor agrícola em Portugal se pudesse tornar atrativo a esta onda de investimento foi necessário satisfazer três condições, que absorvem significativamente os riscos: i) a existência de condições de solo e clima adequadas, ii) infraestrutura pública em áreas estratégicas (transportes, irrigação) e iii) condições que permitam propriedades rurais de grandes dimensões14. Com o avultado investimento público no regadio e o claro apoio político do Estado, as condições foram cumpridas no Alentejo (já de si com dominância de grandes propriedades) e, após uma mudança nos padrões de investimento globais, a intensificação agrícola arranca em plena força após a primeira década do milénio.
Em 2019, 17 anos após o fecho das comportas da barragem do Alqueva, apenas seis empresas controlavam 2/3 dos olivais do grande regadio. Não são o que identificaríamos como agricultoras e agricultores típicos, mas empresas da área do agronegócio, consultoria e gestão agrícolas e fundos de capital de risco de investimento privado15.
13 GRAIN. Barbarians at the barn: private equity sinks its teeth into agriculture, 2020
14 Timothy Daniel Hogg (2023). Financialisation of the agri-food sector in Portugal: The case ofolive groves in the area served by the Alqueva Multipurpose Project
15 Barriga, P. Os Novos Donos do Alentejo. Sábado, Grande Investigação, 2020

Olhando apenas para três dos atores dominantes (De Prado Total; Gallo e Elaia) no setor da olivicultura, no Alentejo, é esclarecedor. 58% da De Prado Total pertence à multinacional De Prado Family Lda, o restante à PSP Investments Holding Europe, uma gestora de fundos de pensões do Canadá. A Gallo Worldwide pertence à Unilever (55%), multinacional de comércio de bens de consumo, com participação restante do Grupo Jerónimo Martins, grande grupo retalhista com cadeias de hipermercados em Portugal (Pingo Doce) e na Polónia. A Elaia, uma joint venture em partes iguais entre a Sovena (a quem pertence a marca Oliveira da Serra) e a Altitan Alpha, um fundo de investimento com investimentos variados – a Elaia foi, entretanto, adquirida pela De Prado.
Não são estas empresas e fundos que apanham a azeitona, mas moldam os processos que definem as operações agrícolas e as relações laborais, com impactes socioambientais expressivos.
Consequências da lógica e dos processos da financeirização
A dominância de agentes externos ao território, mas com vastos recursos para o transformar, produziu o que alguns designam de “duplo-desligamento”16. Por um lado, a desconexão dos ecossistemas através da imposição de uma agricultura industrial. Esta favorece o uso de inputs externos (por exemplo, fertilizante mineral extraído em território Saharaui, ocupado por Marrocos, e transformado na Austrália) ao invés de recursos naturais locais (por exemplo, restolhos, folhada, rama e sobras das culturas utilizadas para melhorar o solo), enquanto se procura isolar a cultura eleita dos processos ecológicos, vistos como risco (é o caso do uso “preventivo” de pesticidas, ou mesmo a modelação abusiva das terras para assegurar condições de drenagem). Por outro lado, existe o desvinculo das comunidades locais, sobretudo nos territórios assolados por dinâmicas de despovoamento e envelhecimento, através da incorporação de tecnologias de mecanização, controlo remoto e automatização, enquanto que as necessidades de trabalho Humano sazonal é colmatado através de recurso a populações vulneráveis, sobretudo proveniente de outros países – “mão-de-obra barata”. Isto decorre enquanto que a paisagem – esse resultado poético de interações complexas entre sociedade e restantes forças dos ecossistemas – é apropriada por atores externos preocupados com a maximização do lucro. O distanciamento físico de quem decide o destino das terras também os alheia das consequências da sua gestão, propiciando um desligamento mais direto do universo de impactes que não cabem numa folha de cálculo.
As dinâmicas na área de influência de Alqueva são semelhantes aos processos de financeirização noutros países – ter em conta que a severidade dos seus impactes também se relaciona fortemente com o grau de proteção social e respeito por Direitos fundamentais em cada país. Falo, brevemente de algumas: a concentração da posse da terra, a vulnerabilidade interna no acesso a alimentos, o acentuar de assimetrias nas cadeias de abastecimento, a precarização da mão-de-obra e os impactes da homogeneização radical da paisagem.
O Sol quando nasce é de todos, a terra é só de alguns
Para assegurar a rentabilidade no curto-prazo do olival industrial são necessários investimentos avultados e áreas extensas para maximizar o lucro. Com custos de operação e instalação a ascender aos 26.800 euros por hectare até maximizar as colheitas, o custo-retorno é uma equação impossível para pequenas áreas e longe dos bolsos e do acesso ao crédito de pequenos/as agricultores e agricultoras. Após o ano 5 ou 7 da exploração, a equação é simples: por cada hectare o custo de operação é de 2.400 euros e o retorno pode atingir os 7.800 (muito graças à venda da água pública ao preço da “uva mijona”). Multiplica-se a área explorada para valores recomendados (70 ha) e, a partir do ano cruzeiro, falamos já de cerca de 378.000 euros de lucro por ano – multiplica-se aqui também o usufruto do subsídio ao uso da água17.
A “fome de terra” também não ficou alheia às empresas imobiliárias, que atuam no sentido de agregar terras para as tornar mais apelativas para venda ou arrendamento de grandes áreas. Na área irrigada de Alqueva, onde um hectare valia 5.000 euros em 2005 está a valer 35.000 a 60.000 euros, sendo o acesso à água um fator de valorização imobiliária na perspetiva de lucro certo e previsível18.
Nesta conjuntura, para os e as donas de pequenas parcelas é mais vantajoso vender as suas terras, para os grandes proprietário, vender ou arrendá-las. Pelo contrário, torna mais difícil a fixação de novas pessoas no espaço rural: os preços tão altos da terra limitam o acesso a novos rurais a uma vida, de alguma forma, ligada ao campo.
O resultado já é claro, enquanto as explorações agrícolas de grande dimensão económica com regadio, no Alentejo, triplicaram em área entre 2009 e 2023, as pequenas reduziram para metade e as muito pequenas são menos de 1/319.
16 Morenés, José Muñoz-Rojas; Silveira, A.; Ferrão, J.; Pinto-Correia, M.T.; Guimarães, M.H.; Schmidt, L.The sustainability of agricultural intensification in the early 21st century: Insights from the olive oil sector in Alentejo (Southern Portugal). In Inclusion, Citizenship and Sustainability, 120-132, Lisboa: ICS-Universidade de Lisboa, 2018.
17 EDIA. Anuário Agrícola de Alqueva 2024, 2025.
18 Expresso Imobiliário. Francisco Horta e Costa: “Devíamos fazer uma estátua a quem criou o Alqueva, conhecido dos grandes investidores agrícolas a nível mundial”, 2023.
19 INE. Superfície irrigável (ha) das explorações agrícola por Localização geográfica (NUTS – 2013) e Classes de dimensão económica; Não periódica, 2025
Super-especialização não é resiliência, mercadoria não é alimento
Como falámos no início, o Alqueva serve praticamente para duas culturas: o olival (60%) e o amendoal (20%). Com o espaço remanescente limitado, muito de uma coisa significa pouco de outras. No contexto nacional, bens alimentares básicos como as leguminosas e os cereais estão a níveis de produção muito abaixo das necessidades (as leguminosas secas satisfazem apenas 15% do consumo interno e os cereais (excepto o arroz) 18% – o trigo em particular a 2%)20. A especialização cultural tem paralelos com a economia colonial, i.e., a dependência da produção primária de apenas uma cultura para exportação, configurando um sistema em que se vende a preços baixos, ficando-se depende de outros produtos de maior valor que não são produzidos internamente.
A superprodução de azeite criou o aparente paradoxo de aumento das importações – enquanto os azeites de produção nacional ganham prémios, em Portugal cresce o consumo de azeite importado.
Sobreiro velhinho, Os Vocalistas
20 INE. Índices de autoprovisionamento, também da publicação periódica Estatísticas Agrícolas, para o ano de 2024, 2025
O alinhamento do objetivo da produção com a maximização do lucro obtido através de mercadorias vocacionadas para a exportação (em oposição a alimentos) deixa os agroecossistemas cativos da volatilidade dos mercados. Exemplos são as “modas” que têm se expressado no Alqueva. A mais recente foi o amendoal: com as quebras de produção dos amendoais da Califórnia (e outros fatores) os mesmos investidores ligados ao olival correram atrás dos preços mais altos, levando a um aumento da área de cultura em mais de 2000% entre 2015 e 2022. Agora que o preço desceu, alguns amendoais já estão a ser convertidos em olival, antes mesmo de terem oportunidade de chegar aos anos mais produtivos.
A sabor das “modas do mercado”, a agricultura não é feita para alimentar e expõe-se à volatilidades e imprevisibilidades várias, da geopolítica à influência dos oligopólios de fatores de produção (como os fertilizantes e os pesticidas).


Ribeira transformada em vala de drenagem e arranque de floresta ribeirinha
Plantação de olival intensivo em montado
Donos da cadeia de abastecimento: produção, compra e venda
Outro processo que se desencadeia é a consolidação vertical e horizontal dentro do setor olivícola, o que significa, em termos de consolidação vertical que, tanto a produção de azeitona como o processamento, transporte, embalamento e venda, estão cada vez mais sob o controlo dos mesmos atores. O comércio e serviços ligados à agricultura acontece assim em “circuitos fechados”, fora do mercado e controlando o acesso aos mercados mais interessantes. A consolidação horizontal passa-se dentro de cada etapa. Por exemplo, cada vez menos empresas produzem azeitona ou são operadoras de lagares.
Esta concentração de poder de mercado corta o acesso dos/as pequenas/os e médias/os agricultoras e agricultores aos mercados que praticam melhores preços, enquanto captura a capacidade de fabrico de azeite. A superprodução de azeitona fez cair os preços, colocando o olival tradicional de sequeiro numa posição de concorrência impossível quando os principais lagares não valorizam a sua azeitona e dão preferência a grandes volumes. O/A agricultor/a, na ausência de alternativas para vender ou processar a sua azeitona – em lagares cooperativos, por exemplo – tem duas escolhas de viabilidade: i) aumentar a sua produção, na procura por maiores volumes e por rendimentos aceitáveis face a preços inferiores, ou ii) abandonar a atividade, vender ou arrendar as suas terras. Nestas circunstâncias, existe um incentivo à intensificação agrícola das explorações agrícolas com capacidade de investimento.
A produção dentro do grupo, do consórcio ou da parceria é privilegiada. É possível transferir custos para as/os agricultoras e agricultores dependentes dessa via de escoamento, por exemplo, atrasando os pagamentos às azeitonas compradas pelo lagar ou mesmo cobrando taxas sobre o volume de azeitona recebida para cobrir alegados “custos de operação” – uma ideia talvez tirada das taxas de “manutenção de conta” praticadas pelo setor bancário?
Espremer a terra é espremer os corpos que trabalham nela
A lógica de maximizar o lucro, para os acionistas, é uma máxima que permeia a realidade física e social do território.
O foco na mecanização e na automatização não dispensou totalmente o trabalho: para tarefas específicas, como a instalação das plantações e nalgumas operações sazonais, ainda são necessários ranchos de corpos resilientes. É prática generalizada das maiores empresas recorrer a intermediários para providenciar “mão-de-obra”. O critério de seleção para o trabalho repetitivo necessário é sobretudo o preço – quanto mais barato melhor, salários baixos para trabalhos duros.
Em resposta a esta procura, redes de tráfico Humano e empresas de trabalho temporário dominam o trabalho agrícola, às costas de populações vulneráveis, em situações que podemos classificar como escravatura moderna, lembrando outros tempos que não foram… há muito tempo21. Exploração laboral, extorsão, habitação precária, violência física, não são situações estranhas aos e às trabalhadores e trabalhadoras dos campos do Sul, a maioria provenientes de comunidades distantes, na Índia, no Senegal, na Gâmbia.
Para quem gere os grandes olivais, são meros números numa folha de cálculo.
21 Barriga, P. Os Novos Escravos do Alentejo. Sábado, Grande Investigação. 2020.

Degradação de solo a jusante de amendoal
Homogeneização extrema da paisagem: o crescente passivo ambiental
Se for a folha de cálculo o nosso instrumento de avaliação, expurgando os impactes sociais e ambientais negativos, o balanço até pode aparentar ser positivo22.
Mas socialmente até já existe algum consenso sobre os efeitos nefastos do modelo de intensificação agrícola favorecido – apesar de comparações infelizes às promessas de Reforma Agrária23. Mas o processo em curso trata-se sim de uma reforma profunda, promovida por sucessivos Governos, inexplicitamente (e sem consentimento público expresso) criando as condições para a financeirização com políticas e práticas governativas de favorecimento do investimento externo, socializando os riscos24 para permitir a extração de riqueza a partir de bens públicos.
22 EDIA. Estudo de Avaliação do Impacto Económico da Implementação do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva, 2025
23 Expresso. Artigo de opinião de Joaquim Varela do Nascimento: O campo alentejano em bolandas, 2025
24 Os riscos são socializados através da transferência do privado para a coletividade (seja através de custos do erário público ou riscos difusos, como a degradação ambiental ou a saúde pública). Neste caso concreto, a socialização dos riscos foi feita logo à partida, através do investimento público nas infraestruturas que permitiram armazenar e distribuir água, requalificar caminhos rurais e acessos a propriedades. Os proprietários servidos não incorreram em qualquer custo (exceto uma taxa de manutenção anual), mas ficaram com garantias de acesso à água. O preço da água foi reduzido e continua abaixo dos custos de operação. A que acresce a subsidiação de projetos agrícolas e infraestruturas. Mais insidioso é o custo social e Humano das pessoas exploradas no trabalho agrícola e os múltiplos impactes ambientais de um modelo agrícola industrial, que impactarão as comunidades, de forma cumulativa, durante décadas.
25 Protegidas pelo Regime de Proteção do Sobreiro e da Azinheira, Decreto-Lei n.º 169/2001 e em habitats abrangidos pelo Regime Jurídico da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, Decreto-Lei n.º 142/2008
26 RTP. Um milhão de árvores a abater no Alqueva, 2001
27 Público. Não há água para tudo no Alqueva: consumo para regadio está no limite, 2023
28 Público. Gestora de Alqueva está a cortar a água aos agricultores que excedem os consumos acordados, 2024
O sacrifício foi imenso. O Rio Guadiana foi furtado de um dos seus troços livres, para encher uma “reserva estratégica”, capaz de colmatar três anos de seca. O “grande lago” de Alqueva implicou a maior operação de abate de sobreiros e azinheiras (mais de meio milhão) alguma vez feita em território nacional. Arrancaram-se estas árvores protegidas para não pôr em causa a qualidade da preciosa água represada25 26. 20 anos mais tarde, a procura de água é tanta que ameaça pôr em causa a reserva, pela sede por extrair lucro das águas públicas, deliciosamente subsidiadas27 28.
A mancha de monoculturas industriais, estendida por milhares de hectares contínuos, é uma homogeneização extrema e rápida da paisagem, sob um regime de uso intensivo dos espaços. Em poucos dias um espaço agroflorestal vê as suas árvores arrancadas e retiradas. Máquinas de construção civil aplanam o terreno, escavam valas para passar tubagem e convertem ribeiras em valetas para drenagem, enquanto que florestas ribeirinhas são assoladas para abrir novos caminhos agrícolas. A terra é moldada em elevações lineares, os “camalhões”, onde se estendem as mangas de rega. Aí, 2.000 árvores pontilham cada hectare, sobre um solo careca.

Olival tradicional derrubado para instalação de olival intensivo
A velocidade da transformação significa que não houve tempo de adaptação dos ecossistemas e das suas comunidades biológicas às mudanças profundas da intervenção. A imensa extensão multiplica os efeitos e fragmenta os sítios não transformados, isolando populações de animais e plantas.
A paisagem verde não faz adivinhar a degradação ambiental que está em curso. As intervenções de instalação em áreas extensas e as más práticas têm levado a processos de erosão do solo visíveis a olho nu – o que significa que toneladas de solo por hectare estão a ser perdidos e com eles o seu potencial produtivo e ecológico. Florestas e sistemas agroflorestais são destruídos, incluindo florestas ribeirinhas. Linhas de água são transformadas em meras valas de drenagem. Habitats protegidos, como o montado ou os charcos temporários mediterrânicos, são arrasados juntamente com plantas endémicas29. A marcha da financeirização da agricultura associada ao regadio tem mesmo acentuado os processos de desertificação30.
As comunidades Humanas também não estão a salvo destes impactes. A superprodução tem o outro lado: a explosão do volume de resíduos. A face mais visível na olivicultura é o bagaço de azeitona, resíduo dos lagares – se o processo de transformação tem um rendimento de 20%, significa que o remanescente poder-se-á tornar resíduo. Se, em quantidades moderadas, pode ser usado diretamente nos solos agrícolas, em grandes volumes passa de fertilizante a poluente. A resposta tem sido procurar retirar algum óleo remanescente através de fábricas, cujo processo implica emissões também elas potencialmente poluentes, especialmente se for o próprio bagaço a ser queimado durante o processo. Os crescentes volumes de azeitona produzida são, depois, grandes volumes de bagaço a ser tratado, o que implica maior capacidade das fábricas e períodos de laboração mais longos. A proximidade a populações pode resultar em situações dramáticas – veja-se o caso das Fortes, cuja luta das populações conquistou um mínimo de dignidade, combatendo uma neblina de fumo que emergia regularmente a aldeia num cheiro peçonhento, entrando pelas lareiras e deixando o rasto de gordura negra entranhada nas superfícies. O cheiro a bagaço é uma “saudação de boas-vindas” frequente para quem faz a linha ferroviária do Sul até Beja, que passa em Alvito. O aroma empesta o ar de localidades a dezenas de quilómetros de distância.
A violação em massa dos planos de ordenamento do território erode os mecanismos de proteção desse direito fundamental a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado31. Figuras como as faixas de proteção sanitária e paisagística (áreas em redor das localidades em que as atividades são condicionadas para evitar impactes negativos – uma das interdições no Município de Beja é a intensificação do uso do solo) não são respeitadas, levando a que haja aplicação sistemática de pesticidas a escassos metros de habitações. O desrespeito pelas zonas de proteção de albufeiras de águas públicas cria pressões sobre a qualidade da água com destino ao consumo Humano.
Os impactes são extensos e a compreensão dos seus efeitos é complexa, mas é evidente que existe uma discussão política a ter: é este o modelo que queremos? Decisões foram tomadas sem esta pergunta elementar ser levada à discussão pública.
29 ZERO. Regadio coletivo de Alqueva tem promovido o colapso da biodiversidade, 2022
30 ZERO. Combate à desertificação sem resultados em Portugal / Programa Nacional de Regadios é ameaça crescente, 2023
31 Ponto 1 do artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa
O que fazer? Um ponto de partida pode ser confrontar os dois paradigmas que têm estado a disputar globalmente o lugar de uma agricultura com futuro: a bio-economia e a eco-economia. O primeiro é o paradigma dominante da “modernização” da agricultura, assente nas atividades que gerem e exploram os recursos biológicos “renováveis”, apropria-os e transforma-os através da intensificação de inputs tecnológicos, através da mobilização de conhecimento de várias disciplinas científicas. Aqui, o património biótico comum é transformado em mercadorias de forma desligada das necessidades diretas das comunidades locais. Por contraste, a eco-economia assenta na intensificação dos processos ecológicos na base, incluindo na reparação de funções não comercializáveis dos ecossistemas. Neste paradigma, o conhecimento local e os processos de geração de conhecimento científico estão integrados e almejam gerar soluções adaptadas a necessidades localizadas.

Fonte: Morenés et al, 2018
A partir de 2019, novos movimentos cívicos emergem. O Movimento Alentejo VIVO e o Juntos Pelo Sudoeste fundam-se em reação aos múltiplos impactes dos novos modelos de intensificação agrícola no Alentejo. A estes têm sucedido outros, como o Alentejo Com-Vida ou o Alcácer p’lo Ambiente. À medida que a visão do Estado afunila na bio-economia, mais evidentes são os seus impactes negativos diretos e indiretos. Os movimentos locais são um sintoma deste confronto de paradigmas, ainda sem espaço público para poder influenciar políticas nacionais, mas audível o suficiente para alimentar iniciativas cidadãs que desafiam hegemonias.
Para saber mais
ACG e Grain, Resisting pension fund capitalism: a webinar series, 2022
Grain, Can pension systems be part of the fight for food sovereignty?, 2025
Grain, We need a movement to take pensions out of financial markets, 2022
