Breve reflexão sobre o perfil jurídico das cooperativas
Deolinda Meira, CEOS.PP, ISCAP, Politécnico do Porto
Tempo aproximado de leitura: 9 minutos
As cooperativas colocam em evidência um modelo de empresa alinhado com os valores e os princípios subjacentes a uma Europa dos cidadãos, assente numa participação ativa, democrática e inclusiva.
O regime jurídico das cooperativas baseia-se internacionalmente numa lógica própria, designada pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI)1 de Identidade Cooperativa, que assenta num conjunto de princípios, num conjunto de valores e numa noção de Cooperativa. Os princípios cooperativos são sete: adesão voluntária e livre; gestão democrática pelos membros; participação económica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; e interesse pela comunidade. Os valores cooperativos, que enformam aqueles princípios, são: i) os valores de autoajuda, responsabilidade individual, democracia, igualdade, equidade e solidariedade, nos quais assenta a atividade das cooperativas como organizações; ii) os valores da honestidade, transparência, responsabilidade social e altruísmo que se dirigem ao comportamento individual dos cooperadores enquanto tais. Quanto à noção de cooperativa, a ACI estabeleceu que “uma cooperativa é uma associação autónoma de pessoas unidas voluntariamente para prosseguirem as suas necessidades e aspirações comuns, quer económicas, quer sociais, quer culturais, através de uma empresa comum e democraticamente controlada”.
Esta Identidade Cooperativa evidencia que as cooperativas se caraterizam pela primazia do indivíduo e dos objetivos sociais sobre o capital, pela governação democrática e participada pelos membros, pela propriedade coletiva e autogestão, pela equidade económica dos membros, pela equidade na distribuição de resultados e pela missão estratégica de educar e formar os seus membros.
Este conceito de identidade cooperativa foi acolhido no ordenamento português. Efetivamente, no Código Cooperativo Português (CCoop)2 a noção de cooperativa (art. 2.º do CCoop) surge associada à necessária obediência aos princípios cooperativos, os quais alcançaram consagração jurídico-constitucional.
1 Trata-se de uma organização internacional privada, criada em 1895 com o fim de promover o modelo cooperativo, e que representa o movimento cooperativo em todo o mundo.
2 Lei n.º 119/2015, de 31 de agosto, com as alterações constantes da Lei n.º 66/2017, de 9 de agosto.
Nos termos do Código Cooperativo português, as cooperativas são “pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles” (n.º 1 do art. 2.º do CCoop). Desta definição, perfeitamente alinhada com a definição da ACI, resulta que o objeto social da cooperativa surge intimamente ligado à sua vocação mutualista, pelo que toda a atividade da cooperativa visa a promoção dos interesses dos/das cooperadores/as. De facto, a cooperativa é criada com vista a eliminar o intermediário especulador, assumindo a cooperativa o papel de simples instrumento de articulação e ativação de um determinado grupo (o dos/das cooperadores/das), com vista à satisfação das necessidades deste grupo em condições mais favoráveis do que seriam obtidas com a intervenção de intermediários.

Primeira bandeira do Cooperativismo
Concebida em 1923, e utilizada pela ACI a partir de 1932, as suas cores significam:
Vermelho – Coragem.
Cor de laranja – Visão de futuro.
Amarelo – Desafios em casa, na família e na comunidade.
Verde – Crescimento individual como pessoa e como cooperada/o.
Azul claro – Horizonte, a necessidade de apoiar, unindo-nos uns aos outros e umas às outras.
Azul escuro – Necessidade de ajudar a si próprio/a e às/aos outras/os através da cooperação.
Violeta – Beleza, calor humano e companheirismo.
A circunstância de o fim principal da cooperativa não ser a obtenção de lucros para depois os repartir, mas sim proporcionar aos seus membros vantagens diretas na sua economia individual, através da sua participação, assente na entreajuda, na atividade da cooperativa, promove um maior compromisso dos membros com a organização, bem os valores da solidariedade e da participação.
Acresce que a cooperativa é uma empresa de propriedade coletiva, o mesmo é dizer que a empresa cooperativa é propriedade daqueles/as que, efetivamente, proporcionam os recursos que permitem o seu funcionamento, sendo que sobre os membros recai o direito/dever de assumirem a sua gestão (art. 29º, n. º1, do CCoop) determina que os “titulares dos órgãos sociais são eleitos em assembleia geral de entre os cooperadores», constituindo um dever de cada cooperador exercer os cargos sociais para os quais tenham sido eleitos, salvo motivo justificado de escusa” (art. 22º, n.º 2, al. b), do CCoop). Esta exigência de que os/as titulares dos órgãos sejam cooperadores permitirá que os interesses dos/das cooperadores/as estejam diretamente representados nos seus órgãos, apresentando a vantagem de os/as dirigentes da cooperativa, orientados pela sua própria experiência, terem permanentemente presentes os interesses dos/das cooperadores/as, não se desviando da finalidade principal da cooperativa, que é, como vimos, a de satisfazer as necessidades dos seus membros.
Refira-se, igualmente, que a cooperativa é uma empresa que se organiza e funciona de forma democrática e participada por força do princípio cooperativo da gestão democrática pelos membros, que valoriza especialmente a participação dos/das cooperadores/as no funcionamento das cooperativas e sublinha a responsabilidade dos/das dirigentes perante os/as cooperadores/as que os/as elegem. Deste princípio resulta que os membros controlam democraticamente a cooperativa, devendo participar ativamente na formulação de políticas e na tomada de decisões fundamentais, com base na regra de um membro, um voto (art. 40.º, n. º1 do CCoop).
A cooperativa apresenta-se também como uma organização empresarial assente na vontade de serviço à comunidade. Tal decorre, desde logo, da necessária observância do Princípio cooperativo da adesão voluntária e livre quanto à admissão e saída dos/das cooperadores/as. Este princípio dispõe que “As cooperativas são organizações voluntárias, abertas a todas as pessoas aptas a utilizar os seus serviços e dispostas a assumir as responsabilidades de membro, sem discriminações de sexo, sociais, políticas raciais ou religiosas”.
A admissão dos membros assenta num princípio de equidade económica que resulta do princípio cooperativo da participação económica dos membros, que fala numa contribuição equitativa para o capital das cooperativas que impende sobre todos os membros (art. 3.º do CCoop). Assim, o montante das entradas de cada cooperador/a pode ser qualquer um decidido pelos/as cooperadores/as, desde que seja equitativo. Acresce que o capital trazido pelos membros tem um caráter instrumental. Essencial é a participação do/a cooperador/a na atividade da cooperativa. Tal significa que estamos perante uma organização empresarial caraterizada por um equilíbrio do poder económico dos seus membros, o que em si mesmo é fomentador de uma cultura empresarial mais inclusiva.
O fim principal da cooperativa não é a obtenção de lucros para depois os repartir, mas maximizar a vantagem que os membros retiram das operações que realizam com a cooperativa ou através da cooperativa. O/a cooperador/a auferirá, em contrapartida pela sua participação na atividade cooperativa, de vantagens económicas, às quais a doutrina chama de vantagens mutualistas ou excedentes, que poderão retornar aos cooperadores. Estas vantagens traduzir-se-ão na obtenção de determinados bens ou serviços a preços inferiores aos do mercado, na venda dos seus produtos eliminando os intermediários do mercado ou numa maior retribuição do trabalho prestado. Haverá excedente cooperativo sempre que houver uma diferença entre as receitas e os custos da atividade com os membros. O excedente será, por isso, um valor provisoriamente pago a mais pelos/as cooperadores/as à cooperativa ou pago a menos pela cooperativa às/aos cooperadoras/es, como contrapartida da participação destas/es na atividade da cooperativa.
Sendo os excedentes, resultantes de operações da cooperativa com os/as seus/suas cooperadores/as, compreende-se, assim, que, quando ocorra o retorno, ele corresponda ao volume dessas operações e não ao número de títulos de capital que cada um/a detenha.
Finalmente, cumpre referir que, na sua organização e funcionamento, as cooperativas devem observar o princípio da educação, formação e informação, que é um princípio estratégico e um fator de legitimação social das cooperativas, evidenciando que a cooperativa é não só uma organização económica, mas também uma organização com finalidades pedagógicas e sociais.
Este princípio cooperativo dispõe que “As cooperativas promovem a educação e a formação dos seus membros, dos representantes eleitos, dos dirigentes e dos trabalhadores, de modo que possam contribuir eficazmente para o desenvolvimento das suas cooperativas. Elas devem informar o grande público particularmente, os jovens e os líderes de opinião sobre a natureza e as vantagens da cooperação” (art. 3.º do CCoop).
Este princípio tem como destinatários os membros, os/as representantes eleitos, os/as dirigentes, os/as trabalhadores/as da cooperativa e a comunidade.

Através da educação e formação visa-se contribuir eficazmente para o desenvolvimento da cooperativa, facultando aos membros, representantes eleitos, dirigentes e trabalhadores da cooperativa, capacidades e conhecimentos que reforcem a sua cultura organizacional, assente nos princípios e valores cooperativos, bem como adequadas ferramentas e competências técnico-profissionais.
Este princípio projeta-se no estatuto dos/das cooperadores/das reconhecendo-lhes um direito de participar nas atividades de educação e formação cooperativas (al. f) do n.º1) do art. 21.º do CCoop), com a consequente obrigação das cooperativas de organizar tais atividades de educação e formação, devendo para o efeito constituir uma reserva “para a educação e formação cultural e técnica dos cooperadores, dos trabalhadores da cooperativa e da comunidade” (art. 97.º,n.º 1 do CCoop).
Referências bibliográficas
Fajardo, Gemma, Fici, Antonio, Henry, Hagen, Hiez, David, Meira, Deolinda, Münkner, Hans & Snaith, Ian, Principles of European Cooperative Law. Principles, Commentaries and National Reports, Cambridge, Intersentia, 2017, DOI
Meira, Deolinda, “As cooperativas em Portugal. Breve apresentação do seu regime jurídico”, In Organização Administrativa: novos actores, novos modelos, Coord. De C. A. Gomes, A. F. Neves & Tiago Serrão, Vol. I., Lis boa, AAFDL Editora, 2018, pp. 807-83.
AA. VV., Código Cooperativo Anotado, Coord. De Deolinda Meira& Maria Elisabete Ramos, Coimbra, Almedina, 2018
Meira, Deolinda, “Cooperative Governance and Sustainability: An Analysis According to New Trends in European Cooperative Law”, Perspectives on Cooperative, Ed. Tadjudje, W., Douvita, I., Singapore, 2022, DOI
Meira, Deolinda & Ramos, Maria Elisabete, “Democratic governance and modernity in 21st century co-operatives in Portugal: Frontiers and balances”, Journal of Co-operative Organization and Management, 11, 100215, 2023, DOI