Nação Cooperativa – Identidade e História do Cooperativismo em Portugal

João Nunes, Cooperativa António Sérgio para a Economia Social

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Origem e Identidade Cooperativa

Portugal corria, a meio do século XIX, amarrado à sua mais antiga aliança. O apoio britânico nas duras invasões napoleónicas que instigaram a fuga da coroa nacional para o Brasil e, logo depois, na conturbada guerra civil entre liberais e miguelistas, rapidamente passaria de auxílio a domínio nas mais variadas esferas da ordem militar, política e, claro está, económica. Por cá, os liberais saídos vencedores da guerra procuravam, empurrados pelos empreendimentos em libra esterlina, mimetizar o desenvolvimento industrial britânico, abrindo caminho para a grande onda de liberalização do comércio e acumulação de capital por parte de uma nova classe burguesa. Fazia-se avançar no país, com elevada dificuldade e dependência decisiva da maquinaria e financiamento estrangeiro (maioritariamente dos beneficiários ingleses), alguma indústria têxtil, metalúrgica e siderúrgica.

No entanto, na nação aliada, o novo modelo capitalista carburava a todo o vapor e, com ele, a proletarização da força trabalhadora sujeita às condições impostas pela classe burguesa detentora e acumuladora de capital. Acumulavam-  -se, por isso, também as desigualdades e, para os trabalhadores, os problemas sociais, a precariedade, a vulnerabilidade à exploração. Mas também as resistências. E o cooperativismo foi, crucialmente, o nascimento de uma dessas resistências.

O ideário do movimento operário era, à época, difuso. Sindicalismo, anarquismo, socialismo nas suas profusas relações e desejos revolucionários surgiam ainda sem fronteiras claras e definidas, mas consumavam-se na organização proletária em greves, reivindicações por melhores condições laborais, protestos de vária ordem e, após o pioneirismo de 28 operários têxteis grevistas de Rochdale, também na constituição de uma expressão e modelo económico próprio e autónomo: a cooperativa autogerida pelos trabalhadores, independente do Estado e alternativa à exploração do modelo capitalista. A criação em 1844 da cooperativa “Rochdale Equitable Pioneers Society Limited” (no condado de Manchester, um dos grandes centros industriais da Grã-Bretanha), e a expressão dos seus estatutos e princípios cooperativos, ainda atuais, que incluíam, desde a livre adesão, ao controlo democrático, educação contínua e devolução de excedentes, foram o grande marco e advento do cooperativismo moderno.

Caixa Económica Operária

O cooperativismo, esta resistência ao capitalismo surgida no seu seio industrial, chegaria também a Portugal, que se inflava, parcamente, na cópia do desenvolvimento capitalista. Também no setor têxtil, e pouco mais de uma década depois de Rochdale, a Fraternal dos Fabricantes de Tecidos e Artes Correlativas surge em Portugal como a primeira cooperativa moderna e a primeira face deste movimento que haveria de compelir ao seu reconhecimento legal. Não é acaso que, mundialmente, as duas leis primordiais de reconhecimento do cooperativismo tenham sido concebidas nestes dois países: a primeira, britânica; a segunda, portuguesa. A Lei Basilar, de 2 de Julho de 1867, em plena monarquia constitucional, atesta legalmente o cooperativismo e destaca os seus dois principais aspetos à data: o associativismo e mutualismo dos seus membros, que se auto-organizam para satisfação de fins comuns, mas também a multissetorialidade desses mesmos fins. E esta última não de somenos importância. A título de exemplo, a Sociedade Cooperativa e Caixa Económica do Porto, criada em 1871, abarcava o consumo, o crédito, a edificação de casas para os sócios, a aquisição de matérias-primas para as indústrias dos sócios, a comercialização dos bens produzidos…toda uma construção mútua de alternativa, inicialmente radicada no operariado industrial e nas jovens resistências urbanas, mas não por aí ficando, logo florescendo para o meio rural, com a sucessiva criação de cooperativas agrícolas e de crédito agrícola com significativa expressão em Portugal.

A identidade cooperativa é assim, desde o berço, não apenas uma forma empresarial distinta, de organização singular e propícia a resoluções ou produções específicas. Não apenas a hipótese de uma outra forma de empresa. Mas sim uma expressão operária de construção coletiva de um modelo de produção, trabalho, consumo e, em suma, vivência, alternativo ao capitalismo e baseado na associação e cooperação mútua, livre e independente.

A República e o Desenvolvimento do Ideário Cooperativista

A premissa e expressão política das cooperativas fazia-se representar na participação em alguns dos primeiros congressos e comícios do movimento operário português. Expandia-se, nos jornais e ações de propaganda, lado a lado com as ideias socialistas de inspiração europeia. Por vezes, esta aproximação levaria ao desenraizamento da figura central da cooperativa para outras formas de organização – das mais orientadas à luta política até às mais diversas transformações em entidades de fins igualmente mutualísticos como associações, mutualidades e outras expressões do que hoje chamaríamos de Economia Social, partilhando raízes e princípios com o movimento cooperativo.

Toda esta pluralidade veio a atingir maiores expoentes na ascensão do republicanismo. A Primeira República veio tornar-se um campo de maior liberdade sindical, fortalecendo em consequência o crescimento do cooperativismo, verificando-se a eclosão de cerca de três centenas de novas cooperativas e até uma federação. Era, no entanto, também um terreno de elevada instabilidade (afinal, tal caracterizava a República em todos os seus domínios), onde muitas das novas cooperativas não chegariam a alcançar a durabilidade e impactos desejados, enfrentando elevadas dificuldades, sobretudo a nível financeiro.

As fronteiras ideológicas ficariam, também neste período, cada vez mais cerradas. Ora demasiado compatibilista e desfocado da luta de classes para os socialistas revolucionários, ora demasiado independente para o centralismo republicano, surgia a clara necessidade do cooperativismo se autoidentificar ideologicamente sob pena de se encurralar nas aguerridas disputas políticas da época. Assim já se pensava na Europa, muito em especial em França. A Escola de Nîmes, liderada por Charles Gide pensava numa “República Cooperativa” como uma outra via face ao capitalismo ou ao socialismo estatal, colocada basilarmente no caminho para a eliminação do lucro, visto como meio central de exploração. Outros nomes gauleses como Bernard Laverge ou Ernest Poisson consubstanciaram esta ordem ideológica cooperativa, focando-a em princípios de descentralização política e gestão democrática. E Fauquet, que acrescentava o setor cooperativo como diferenciado dentro dos setores económicos existentes na sociedade francesa, mas também portuguesa, para onde olhou com grande destaque, influenciando crucialmente o maior nome português do cooperativismo: António Sérgio.

Do Estado Novo à Revolução

António Sérgio, destacado pensador, pedagogo e sociólogo, chegou a ter, durante dois breves meses, a pasta ministerial da Instrução durante a primeira república. Mas foi já durante o Estado Novo, entre exílios forçados pela sua posição antifascista, que teve o contacto com o expansivo ideário cooperativista. Inspirado pelos contemporâneos franceses, via a expansão e formação intelectual e moral deste setor económico diferenciado, o setor cooperativo, como o caminho para, ora coligado às pequenas unidades económicas ora com algum papel meramente auxiliar público, vencer o setor capitalista. O objetivo dos/das cooperativistas, defendia, seria o fomento da “Nação Cooperativa”, onde o setor cooperativo fosse parte tão intrínseca ao corpo e à mentalidade do tecido social, que se governaria livremente a si mesmo, libertando-se quer de qualquer cariz exploratório quer estatizante. Era através da educação – uma educação cooperativa – que pensava ser possível a transformação social verdadeira, e um panorama político pleno de liberdade e justiça social sem recorrer ao autoritarismo.

O sonho da Nação Cooperativa seria, no entanto, cada vez mais enviado para as sombras, tendo o seu grande pensador exilado. O Estado Novo rompeu o movimento cooperativo nacional, combatendo e ilegalizando as suas ligações sindicais e democráticas, e integrando-as regulamentarmente dentro das Corporações Nacionais, sob supervisão e controlo direto do regime salazarista, garantia da ausência de resistência política ou cariz “perigoso” para a ditadura.

A Nação Cooperativa

António Sérgio, entre exílios e penosos períodos de prisão política, procurava, ainda que manietado pela opressão do Estado, organizar a intercooperação através de conselhos de cooperativas. Para vencer, assim o pensava, o setor cooperativo deveria estar organizado em rede, interligado entre si. Chegou a ser presidente do «Conselho Central das Cooperativas de Lisboa e Arredores» e a organizar um “Boletim Cooperativista” onde não desistia da pedagogia por via da cooperação. No seu primeiro número, além da defesa de legislação e auxílios financeiros à criação de cooperativas, é inequívoco no seu vital objetivo: “Criar no país uma verdadeira consciência cooperativista, que encare o cooperativismo integral como um fim no domínio da economia, isto é, no da produção e distribuição da riqueza, repelindo qualquer intuito de fazer das cooperativas instrumentos desses instrumentos…”

Apesar da resistência antifascista de muitos, o Estado Novo não permitiu o avançar desta transformação. Pelo contrário, cortou-lhe as pernas, restringindo a sua relevância e espaço para associativismo significativo. Apenas algumas cooperativas agrícolas, alinhadas ao plano rústico de Salazar para a economia nacional, iam oferecendo algum desenvolvimento dentro do setor. Só a Revolução Democrática permitiu uma nova explosão no movimento cooperativo. De menos de mil cooperativas existentes em todo o país, mais de metade agrícolas, o número quadruplicou no período revolucionário (João Salazar Leite, 2011). Se exatamente como António Sérgio o imaginara? Diríamos que muitas vezes sim e por outras menos, quanto mais instrumentalizada e não encarada como fim próprio fosse a visão do cooperativismo. No entanto, desde a participação de cooperativas e do ideário cooperativo na enorme reconstrução urbana proporcionada pelo Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), passando pela base social e autogestionária da reforma agrária e da criação de diversas cooperativas de âmbito industrial, com forte apoio institucional das forças revolucionárias, o Processo Revolucionário em Curso (PREC) foi o salto para a ribalta das reais possibilidades desta expressão da transformação social, cujas esperanças se foram a passo esvaindo com as reformas políticas e económicas pós-76. Porém, a Constituição da República Portuguesa de 1976 firmaria, postumamente a António Sérgio, a abertura para uma das suas doutrinas – a identificação de um setor cooperativo (e social), com regime de propriedade legitimado e diferenciado face ao público e ao privado, e a defesa do dever estatal de o proteger e fomentar a sua associação, meios e desenvolvimento.

É inegável a importância do amparo constitucional que 1976 deu ao cooperativismo, como do seu solidificar pelo Código Cooperativo que viria a ser criado anos depois, à semelhança dos progressivos desenvolvimentos que incorporariam a construção de federações de cooperativas e a definição legal, em 2013, das bases de um setor da Economia Social mais alargado (mas também menos criterioso e focado) que representa hoje uma parte não negligenciável do contributo para a economia e vida nacionais. Não obstante, atualmente, segundo os dados mais recentes da Conta Satélite da Economia Social (INE/CASES) existem cerca de 2150 cooperativas, menos do que em 2010, certamente menos do que no pós-25 de Abril. Grande parte das subsistentes, sejamos francos, opera ramificada e menos polivalente do que a sua identidade, raízes e princípios cooperativos já elencados que as poderiam capacitar. Menos capazes de criar vivências próprias e completas de forma associativa, dificilmente se distanciando tão significativamente do sistema comercial de tamanho domínio e hegemonia que vigora à sua volta. A educação cooperativa é, igualmente, pouco mais que uma miragem.

Passados quase cinquenta anos da Constituição de 1976 e cem do idealismo de António Sérgio, teremos de nos perguntar: Quem se esqueceu da Nação Cooperativa? Mas também, e talvez de forma mais eminente, quem ainda pode sonhar com ela. Vivemos numa composição social de um Estado fragilizado, de hegemonia individualista (quando não obscurantista) e desigual na vivência económica (entre tantas outras). Num combo de rarefeitas resistências possíveis, antigas utopias abaladas e decisões distantes da gestão coletiva.

No 3.º Boletim Cooperativista, António Sérgio elabora e engenha sobre a crítica no cooperativismo. “Deve sempre coincidir com o auxiliar – auxílio em pura atitude de fraternidade: com calma; com bom humor; com sorriso”. Serão essencialmente estas as ferramentas das quais ainda nos resta a posse efetiva: a crítica e a fraternidade pelo comum – ambas essenciais, aquilo que nos faz transformar o que nos rodeia cooperando com o outro. São estas, igualmente, as bases inscritas na identidade da imaginada Nação Cooperativa – a crítica e resistente construção coletiva de vivência numa sociedade mútua, livre e independente.

Referências Bibliográficas

Sérgio, António (1955). Boletim Cooperativista. Obtido de CASES, “Boletim Cooperativista Comentado” (2012)

Leite, João Salazar (2011). Passado e presente do cooperativismo português. Regime jurídico CIRIEC. CASES.

Instituto Nacional de Estatística (INE) & Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES). (2023). Conta satélite da economia social: Resultados de 2020 e 2010.

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