Quem se alimenta do sistema alimentar?
A concentração do poder corporativo a montante do nosso prato
Pedro Horta
Tempo aproximado de leitura: 17 minutos
Nas montras do consumo há uma aparente diversidade. Prateleiras sem fim de pacotes, garrafas e sacos coloridos; vegetais e frutas frescas entre exóticas e corriqueiras, marcas infinitas de produtos no tamanho conveniente para preencher o carrinho das compras. Para a maioria de nós, nesse papel de consumidor/a, os alimentos não têm grande história para contar, apenas o que são e o seu preço, para considerarmos a receita a confecionar e gerirmos o orçamento disponível para o mês.
Convidamos à curiosidade, por um instante, e é fácil lembrar o gráfico emblemático produzido pela Oxfam em 2013:
A variedade de marcas de produtos alimentares embalados contrai-se numa dezena de atores. A história das próprias matérias-primas alimentares é também ela um trajeto de consolidação empresarial, como nos mostra o relatório de junho de 2025 do Grupo ETC e da GRAIN, referente a dados disponíveis de 2023.
A industrialização da agricultura tem visado aproximar os agroecossistemas da estrutura e da lógica da “fábrica”: um espaço dedicado a uma produção específica, com inputs (entradas) e outputs (saídas) previsíveis e massificados, passíveis de controlo centralizado com uma automatização crescente. A agricultura deve, nesta ideologia, ser fornecedora das indústrias alimentares, de transporte e retalhistas e, por outro lado, ser consumidora de fatores de produção (insumos / inputs) das indústrias química, de maquinaria, de biotecnologia, de informática e outras. Na consumação desta ideologia parece vislumbrar-se uma agricultura sem agricultores/as e um campo esvaziado de vida, enquanto que os meios de produção estão cada vez mais distantes de quem produz e a realidade da produção mais distante de quem consome.
Em cada um desses setores – e por vezes esbatendo as fronteiras entre estes – continua o processo de concentração dos meios de produção e das quotas de mercado.
O relatório da ETC & GRAIN analisa o crescente domínio empresarial em seis setores que atualmente são estruturais para a produção de alimentos: as sementes comerciais, os pesticidas, os fertilizantes sintéticos, a maquinaria agrícola, a farmacêutica animal e a genética pecuária.
Os oligopólios do negócio dos alimentos
Ouvimos, bem recentemente, falar de oligarcas e oligarquias, para descrever regimes autoritários ou economias que estão “a saque” de uma minoria que, através dos mecanismos repressivos de um governo ou da corrupção, estabelecem o controlo político de um ou mais territórios e, até mesmo, albergam intenções expansionistas e bélicas. Oligopólio é uma palavra ‘prima’, que descreve esse mesmo mecanismo de domínio por um número pequeno de agentes, mas mais referente a uma estrutura de mercado, a um setor, numa perspetiva de quem fornece. Muitas vezes os oligarcas estão eles mesmos ligados a oligopólios, sendo estes, frequentemente, os instrumentos-chave para aquisição e manutenção do poder.
Quando quatro ou menos empresas controlam mais de 40% do mercado no seu setor, podemos considerar que existe um oligopólio, uma vez que as condições de concorrência, advogadas pelo mercado “livre”, estão severamente distorcidas pela influência desmedida destes atores. De acordo com esse critério, os setores das sementes comerciais, pesticidas, maquinaria agrícola e farmacêutica animal são oligopólios. Outros setores, como o dos fertilizantes, têm uma grande concentração à escala de países e por tipo de matéria fertilizante, funcionando na prática como olipólios.

Fonte: Grupo ETC & Grain, Los diez gigantes de los agronegocios: la concentración corporativa en la alimentación y en la agricultura, 2025
O pacote tecnológico semente-pesticida
Nos setores das sementes comerciais e pesticidas, o chamado “pacote tecnológico” surgido no pós-II Guerra Mundial, temos os mesmos grandes atores. Os dois maiores do setor das sementes concentram 42% da quota de mercado, os quatro maiores chegam aos 56%. Para os pesticidas, os dois maiores têm 40% e os quatro mais importantes ascendem aos 61%. Os quatro grandes são os mesmos para ambos os mercados: a Bayer (Alemanha), a Corteva (EUA), a Syngenta (China/Suíça) e a BASF (Alemanha).
O “desenvolvimento” de sementes comerciais dos quatro grandes tem-se focado ao longo das últimas décadas na modificação genética, com crescente integração da inteligência artificial (IA) nos seus processos de alteração genética – utilizando modelos para a previsão da expressão das sequências de genes, ou em termos mais simples, para a ativação de um gene para se tornar funcional, acelerando assim os processos de produção de novos organismos geneticamente modificados (OGM). Para a integração da IA, novas alianças emergem entre setores: a Syngenta associou-se à InstaDeep, recentemente adquirida pela empresa alemã BioNTech.
Face aos problemas ambientais derivados do modelo industrial de agricultura, as empresas estão a criar o seu próprio conceito de “agricultura regenerativa”, na proposta de um novo modelo capaz de dar resposta aos problemas gerados pelo anterior. Estes programas de “agricultura regenerativa” são, simultaneamente, um campo experimental para novos produtos (incluindo OGM), uma oportunidade para extrair dados dos agricultores e agricultoras e das suas quintas através de plataformas digitais privadas (um aspeto do emergente capitalismo de vigilância1) e um potencial greenwashing através de créditos de carbono2. Sob a bandeira desta “agricultura regenerativa” têm crescido alianças entre grandes atores de toda a cadeia agroalimentar: a Syngenta aliou-se à Pepsico, McDonald’s e à Lopez Foods e a Bayer ao setor da soja no Brasil.
Outro conjunto de grandes alianças dos gigantes das sementes e dos pesticidas é na vertente de produção de biocombustíveis (ou agrocombustíveis), onde as multinacionais desenvolvem o pacote tecnológico para a produção de combustíveis a partir de plantas oleaginosas, como a colza e o girassol. Para isso, estão a consolidar-se ligações estratégicas com o setor dos combustíveis fósseis. Por exemplo, a Corteva associou-se à Chevron e à BP (British Petroleum), e ainda à gigante do comércio internacional de matérias-primas agrícolas, a Bunge.
1 Termo cunhado por Shoshana Zuboff, referindo-se à proliferação de práticas de grandes empresas de extração em massa e de privatização do valor de dados de cariz pessoal. A Bayer obtém dados de mais de 89 milhões de hectares (ha) em 20 países, através da sua plataforma Climate FieldView. A plataforma digital da Syngenta tem uma cobertura de 88 milhões de ha. Estas plataformas estão vinculadas ao gigantes das tecnologias de informação através dos seus servidores e bases de dados. Sob a promessa de melhoria das práticas, estes sistemas são usados como meio de venda direta dos produtos das empresas.
2 O pagamento pela captura de carbono que é, por vezes, utilizado para fazer a compensação de emissões, podendo as empresas alegar “neutralidade” ou até balanço positivo, o que ignora problemas localizados e leva a que o direito para poluir seja comprável.
Adubos sintéticos: fundamentais para a agricultura industrial
Os fertilizantes ou adubos sintéticos são produtos derivados da extração de matérias minerais ou através do processo de fixação de azoto atmosférico, conhecido como processo Haber-Bosch3. A produção destes inputs está muito dependente da geografia, porque está ligada à localização dos jazigos minerais e à capacidade de extração e processamento dos macronutrientes potássio e fósforo, e do acesso a energia barata para o macronutriente azoto, uma vez que o processo Haber-Bosch é muito consumidor de energia. Por estas razões, mais de 40% da produção de fertilizantes azotados está concentrada na China, na Rússia, na Arábia Saudita e no Qatar. 70% dos fertilizantes de fosfato estão na China, em Marrocos, nos EUA e na Rússia, e 75% da produção de fertilizantes potássicos advêm do Canadá, da Rússia, da Bielorrússia e da China.
As principais empresas estão vinculadas a estes países. Globalmente, 10 empresas controlam 39% do mercado. A concentração é maior ainda quando segmentamos por tipo de matéria fertilizante e por mercado nacional, por exemplo, nos EUA, a Mosaic controla 90% do mercado interno. Os fertilizantes potássicos são dominados mundialmente por apenas quatro empresas: Nutrien, Mosaic, ICL e K+S, com metade do mercado.

3 Desenvolvido pelo químico Fritz Haber e industrializado por Carl Bosh, este processo de produção de adubos azotados, contribuiu para a industrialização da agricultura e para a produção em massa.
4 O relatório da ETC e da GRAIN remete para o estudo da GRAIN e IATP: “Un cartel corporativo fertiliza la inflación de los precios de los alimentos”, de 23 de maio de 2023
Este controlo sobre o mercado interno e mundial, confere a uma minoria de empresas extrema influência sobre os preços. Durante a crise de matérias-primas, após o início da guerra na Ucrânia, as principais empresas de fertilizantes registaram lucros record quando o preço dos fertilizantes disparou, endividando agricultoras e países (existem suspeitas que esta foi uma atuação deliberada4).
À semelhança das empresas de pesticidas, as multinacionais dos fertilizantes estão também a investir na “agricultura regenerativa” como bandeira de projetos associados à captura de carbono. Por outro lado, o recente surgimento de “hidrogénio sustentável” (hidrogénio azul ou hidrogénio verde) na produção de adubos, é também comunicada como uma medida de redução da pegada carbónica da indústria, quando na realidade estes processos consomem grandes quantidades de energia, obrigando a uma expansão energética, com todas as consequências que daí advêm.
Mecanização, medicamentos veterinários e genética animal
O setor da maquinaria agrícola está claramente consolidado, com 43% do mercado na mão de apenas quatro empresas: Deere and Co. (EUA), CNH Industrial (Reino Unido/Holanda), AGCO (EUA) e Kubota (Japão).
À semelhança das multinacionais de sementes e de pesticidas, as grandes empresas de maquinaria agrícola estão a acompanhar a atualização tecnológica do pacote semente-pesticida-máquina, através da aquisição e parceria com empresas de IA e tecnologias digitais, o que permite a extração massiva de dados dos seus clientes. Por exemplo, a John Deere está a desenvolver uma medida tecnológica que designa de See & Spray, em parceria com a Syngenta e a empresa InnerPlant, para produzir OGM que consigam emitir sinais captáveis para funcionar como sensores de “stress” das plantas (quando lhes falta água ou nutrientes, por exemplo), permitindo uma maior automatização e aplicação precisa de inputs através de maquinaria especializada. A necessidade de ligação permanente à internet tem levado a alianças com os gigantes das telecomunicações. Por exemplo, a CNH aliou-se à Telecom Argentina e a John Deere à Space X do Elon Musk.
Mãe dos trabalhos, CRUA
5 O relatório da ETC e da GRAIN remete para: Michaela Herrmann y Clare Carlile, “‘Narratives of delay’: how the animal pharma industry resists moves to curb the overuse of antibiotics on farms”, 20 de dezembro de 2023.
6 The Review on Antimicrobial Resistance: “Antimicrobial Resistance: Tackling a crisis for the health and wealth of nations”, 2014.
7 A diminuição das emissões por animal pode ser contrariada pelo aumento do número de animais, algo conhecido como “efeito ricochete”, em que os ganhos de eficiência são contrariados por aumentos de escala. A estabulação coloca problemas na concentração dos efluentes pecuários (dejetos animais) que são também emissores de GEE.
A farmacêutica animal é outro setor com extrema concentração empresarial: quatro empresas têm quase metade das vendas a nível mundial e as 10 maiores controlam 68% do mercado – sobretudo nos EUA e na Europa. Há que ter em conta que a maior parte do lucro das vendas advém do mercado para animais domésticos mas, ainda assim, mais de 45% advém da pecuária.
Um dos grandes problemas do uso sistemático e amplamente disseminado de antibióticos é a resistência a estes medicamentos (RAM). Estimam-se 700.000 mortes humanas, por ano, em todo o mundo devido à RAM (uma morte a cada 45 segundos, o que equivale à queda de um Boeing 747 todas as semanas) e que poderão vir a atingir as 10 milhões de mortes anuais em 2050.5 6 Um problema antagónico ao lucro potencial da indústria.
O setor pecuário é um dos principais emissores de gases de efeito do estufa (GEE) na produção agrícola, especialmente pelas emissões dos efluentes (dejetos animais) e da fermentação entérica (gases emitidos da digestão de animais ruminantes, como o gado bovino). É neste campo que as empresas têm procurado “inovar”. À semelhança dos aditivos nas rações, há novos medicamentos que alterarem o processo digestivo dos animais para diminuir as suas emissões. Postas de lado as preocupações sobre o que isto pode significar para a saúde e bem-estar animal, o contributo destas “emendas tecnológicas” para a diminuição de emissões de GEE pode ser insignificante se continuarmos a registar aumento nos números de animais criados e mantidos em estábulos e quando estas emissões estão espalhadas por toda a cadeia, desde logo na produção das matérias-primas para rações (soja e milho, cuja produção está ligada à desflorestação global)7.

A indústria da genética animal cria raças com os atributos desejáveis para as indústrias a jusante (produção industrial de carne, lacticínios e aquacultura). Este setor é também dominado por um pequeno número de empresas não cotadas em bolsa, pelo que a informação financeira não está publicamente acessível, mas o relatório da ETC & GRAIN chegou a algumas estimativas para o mercado de material genético para a produção de carne de frango.
Através de acordos para abastecimento de raças para produção industrial (como a Cobb e a Ross), ou através dos seus próprios aviários, três multinacionais (Tyson Foods dos EUA, EW da Alemanha e Hendrix Genetics dos Países Baixos) fornecem mais de 120 países. A expansão do mercado destas multinacionais significa ocupar os lugares onde raças autóctones ainda são usadas e fomentar o seu declínio para ganhar quota de mercado – como em muitos países no continente Africano em que as raças nativas ainda correspondem a 80% dos animais criados para a alimentação Humana.
A agricultura industrial está cativa das indústrias a montante, que lhe fornecem tanto os meios para a produção como determinam os próprios métodos. Isto confere a estes setores um enorme poder sobre o que acontece nos campos e no que chega às prateleiras. O domínio de poucas empresas sobre cada setor leva ainda a maior controlo concentrado nas mãos de poucos, levando a um poder sem precedentes. Num trajeto para a soberania alimentar, é inevitável questionar este poder.
Para saber mais
Grupo ETC & Grain, Los diez gigantes de los agronegocios: la concentración corporativa en la alimentación y en la agricultura, 2025
Leonardo Fernandes, Veneno tipo exportação: venda de agrotóxicos banidos em países europeus explode e Brasil é o maior consumidor, Brasil de Fato, 2025

