Plataformas cooperativas

Os desafios da contraposição ao capitalismo digital

e a urgente necessidade de desenvolver uma política cooperativa radicalmente alternativa

Stefano Tortorici, Scuola Normale Superiore. Tradução: CIDAC

Tempo aproximado de leitura: 12 minutos

As plataformas digitais assumiram um lugar omnipresente nas nossas vidas, economias, sociedades. Muitas das nossas ações são, hoje, mediadas por plataformas, desde comprar um bilhete de comboio, reservar um hotel, chamar um táxi, até ao contacto com as nossas pessoas amigas. Somos todos e todas frequentemente obrigadas a utilizar redes sociais como o Facebook ou o Instagram e plataformas como a Uber ou a Airbnb. O advento da chamada Web 2.01, que permitiu aos e às utilizadoras interagirem ativamente online e a simultânea descida das taxas de juro, que levou à conveniência relativa de investimentos de risco de grandes capitais financeiros (Srnicek, 2017), lançaram, de forma prepotente, o novo modelo de negócio das plataformas. Estas ganham com a intermediação entre, pelo menos, dois tipos de pessoas utilizadoras, possibilitada pela acumulação de dados e respetiva implementação dos seus algoritmos. O valor das maiores empresas do mundo, todas americanas e que ficaram na história sob a sigla GAFAM (Google, hoje Alphabet, Apple, Facebook, hoje Meta, Amazon e Microsoft), atingiu uma impressionante capitalização bolsista de 13,5 biliões de dólares no final de dezembro de 2024. Embora estas empresas também tenham outros negócios, os seus lucros provêm principalmente das suas plataformas (Gawer e Srnicek, 2021). Veja-se, por exemplo, o caso da Amazon, cujo serviço mais rentável não é a logística, mas a sua nuvem Amazon Web Service (AWS), da qual resultam mais de 50% dos seus lucros (Into The Black Box, 2024). São, frequentemente, estas plataformas e os seus dados que estão, hoje, por detrás da estrondosa revolução da inteligência artificial.

Desde o surgimento das plataformas, as praças e ruas das nossas cidades, de Bombaim a Nova Iorque, do Rio de Janeiro à Cidade do Cabo, de Turim a Sidney, foram-se enchendo de movimentos sociais, de estafetas e motoristas, que só mais tarde vieram a ser contactados e parcialmente apoiados também por alguns sindicatos mais tradicionais e por numerosas – e ainda insuficientes – iniciativas legais para melhorar as péssimas e precárias condições de trabalho destes e destas trabalhadoras. Existe uma vasta literatura que testemunha a introdução de práticas do século XIX, que se tornaram novamente atuais graças ao surgimento das plataformas, desde o trabalho para a economia “gig” até à total falta de regulação pelo facto de serem considerados “trabalhadores/as independentes”. As pessoas trabalhadoras das plataformas são frequentemente mal pagas, não lhes são garantidos os direitos sindicais básicos e vivem na precariedade. O capitalismo de plataforma deteriorou ainda mais o próprio capitalismo, como demonstram as classificações do Fairwork, um projeto do Oxford Internet Institute que avalia as péssimas condições de trabalho em plataformas, em 39 países de todo o mundo.

Há uma série de atores a nível global que têm tentado melhorar as condições de trabalho e diminuir o poder excessivo das plataformas. Desde os movimentos e sindicatos mais radicais, passando pela associação de pequenas e médias empresas e pessoas consumidoras, até à legislação, como a recente Platform Work Directive, a diretiva da União Europeia relativa ao trabalho em plataformas. No entanto, desde o surgimento da Internet, têm surgido organizações digitais alternativas que, nos últimos tempos, se têm agrupado sob as categorias de Solidarity Tech2 (Scholz, 2024) ou Digital Solidarity Economies3 (Albornoz et al., 2024): bens comuns digitais, cooperativas digitais e plataformas cooperativas, algumas Decentralised Autonomous Organizations (DAOs)4, ou seja, organizações baseadas na tecnologia blockchain5, e, mais recentemente, algumas tentativas de “AI for the people6”.

1 Shermin Vorshimin (2019) explica eficazmente a história da Web em três fases: a Web 1, na década de 1990, apenas permitia às pessoas utilizadoras navegar e ler; a Web 2, no início da década de 2000, permite à pessoa utilizadora interagir ativamente, escrever; e a Web 3 supera o sistema centralizado de validação de plataformas graças à validação descentralizada em Blockchain (ver nota de rodapé 5).

NT: Tecnologia Solidária.

3 NT: Economias Solidárias Digitais.

NT: Organizações Autónomas Descentralizadas.

5 A tecnologia Blockchain, parafraseando Primavera De Filippi e Aaron Wright (2018), é um registo distribuído, imutável e descentralizado que permite que as transações sejam registadas de forma segura e verificável sem a necessidade de uma autoridade central ou de confiança.

NT: Inteligência Artificial para as pessoas.

As cooperativas nasceram como uma tecnologia organizacional destinada a melhorar as condições de trabalho ou de consumo dos seus membros. Historicamente, tiveram até ambições mais radicais e emancipatórias, desde a erradicação da pobreza (Owen) ao apoio às lutas das comunidades afro-americanas contra a sua segregação (Du Bois). Outras degeneraram no seu oposto, perdendo os seus valores alternativos ao capitalismo e acabando por apoiar valores diferentes apenas no discurso (Semenzin e Sacchetto, 2014). Hoje em dia, existe uma necessidade urgente e renovada de resolver a crise de identidade do cooperativismo, de escapar da sua degeneração neoliberal, redefinindo os seus valores à luz dos grandes desafios do nosso tempo: desde a crise climática à eliminação das divisões por categorias de etnia,, género e classe (Fraser, 2022; Tortorici, 2024). Na atualidade, existem algumas experiências na vanguarda da busca radical da justiça climática. As pessoas trabalhadoras da EX GKN, em Campi Bisenzio (na província de Florença), um gigante multinacional de semieixos automáticos, conduzem desde 9 de julho de 2021, há três anos e meio, uma extraordinária ocupação e luta para reconverter a fábrica tendo em conta as necessidades sociais e ambientais, fazendo, assim, convergir estes movimentos. Ao longo da história, muitas cooperativas tentaram mudar o capitalismo, no entanto, não conseguiram, em conjunto, mudá-lo radicalmente (Benkler, 2017).

As plataformas cooperativas nasceram da premente economia de plataforma, enfrentando, muitas vezes, os mesmos problemas das cooperativas tradicionais e incorporando valores mais ou menos radicais. Desde as que garantem um serviço público e que têm uma participação democrática limitada, às que tentam lutar, através de sistemas participativos engenhosos, pela justiça climática e contra as discriminações de género, etnia e classe.

O conceito de “plataformas cooperativas” nasceu em dezembro de 2014, na sequência de dois pequenos artigos de Trebor Scholz, professor na The New School de Nova Iorque e diretor do Platform Cooperativism Consortium, e Nathan Schneider, professor na Universidade do Colorado Boulder. As plataformas cooperativas são as plataformas digitais que têm, segundo Scholz (2023), duas caraterísticas principais: são de propriedade das pessoas utilizadoras e trabalhadoras e têm uma governação cooperativa democrática baseada no princípio cooperativo de “um membro, um voto”.

Há quem distinga dois tipos principais de plataformas cooperativas: 1) por um lado, as start-up cooperativas que nascem já com a intenção de desenvolver uma plataforma e que são designadas plataformas cooperativas; 2) por outro lado, as cooperativas tradicionais que desenvolvem uma plataforma mais tarde e que são subtilmente designadas por cooperativas de plataforma. A The Drivers Cooperative (TDC) é um exemplo do primeiro tipo. A Cotabo, do segundo.

A The Drivers Cooperative foi fundada em Nova Iorque, em 2021, por uma associação de motoristas e ativistas que decidiram lançar uma plataforma para melhorar as suas condições de trabalho, e com a grande ambição de derrotar gigantes como a Uber e a Lyft, sendo ao mesmo tempo sustentável. A TDC nasceu como uma plataforma de e para pessoas motoristas, para protegê-las da extração contínua das compensações remuneratórias pelas viagens que realizam e da desativação arbitrária por parte da Uber e Lyft. Durante algum tempo, a cooperativa experimentou, com sucesso, um salário mínimo por hora de 30 dólares, muito acima do salário médio praticado pelas plataformas da cidade. Mas, agora, na sequência de alguns problemas no desenvolvimento da plataforma e de uma crise interna, os e as motoristas estão a especializar-se em transportes urbanos para a Autoridade Metropolitana de Transportes de Nova Iorque. Por outro lado, surgiram novos TDC, por exemplo em Denver, no Colorado, e estão em vias de ser criadas noutros Estados dos EUA.

A Cotabo, por outro lado, é uma cooperativa de táxis histórica de Bolonha, fundada em 1967, constituída por mais de 500 taxistas, e é a maior empresa de táxis da cidade. Desde 2014, tem vindo a desenvolver uma plataforma que faz, hoje, a intermediação de 70% das viagens da cooperativa. O seu algoritmo funciona de forma diferente do algoritmo de preços dinâmicos (ou surge pricing em inglês, ndt) da Uber – que aplica a lei da oferta e da procura – garantindo, assim e de certa maneira, aquele que é ainda considerado um serviço público em Itália. Em suma, em vez de determinar o preço das viagens de acordo com a lei do mercado, tornando certas viagens caras em determinados momentos, por exemplo, durante uma feira ou um concerto, o algoritmo da Cotabo responde a determinadas tarifas estabelecidas pelo município e tenta também garantir que a viagem é atribuída ao ou à condutora da zona que está livre há mais tempo (Eccher, 2024).

7 Movimento social francês nascido em março de 2016, com assembleias horizontais noturnas na Place de La République, em Paris, e protestos contra a Loi Travail (Lei do Trabalho, ndt) em todo o país.

Existem plataformas cooperativas de entrega de comida, como a federação Coopcycle, que inclui mais de 50 cooperativas de estafetas, na Europa, e que nasceu na sequência da Nuit Debut7, e de comida, como a Open Food Network, que fornece uma plataforma para pequenos e pequenas produtoras em vários países do mundo; e em muitos outros sectores, desde plataformas de babysitting em Nova Iorque (Carefully) a plataformas que ligam necessidades das pessoas a fornecedores/as, na Turquia (Needsmap). Surgiram tantas experiências, empresas e projetos que, hoje, se pode falar de um movimento social de apoio. Scholz (2023) fala, a este respeito, de cooperativismo de plataformas, incluindo organizações, federações e pessoas investigadoras que as apoiam. O diretório do Platform Cooperativism Consortium conta com 638 projetos em mais de 53 países do mundo (dados de 7 de janeiro de 2025). Este número, no entanto, não corresponde a plataformas cooperativas reais e ativas. Apliquei, recentemente, um questionário, a nível mundial, que demonstra existirem muito menos. O movimento cooperativo de plataformas é ainda jovem. Tem ainda de desenvolver o seu próprio modelo, em muitos aspetos, e dotar-se de um sistema próprio de governação e de valores políticos.

As plataformas cooperativas ainda têm que provar que são um modelo sustentável. Se, no início, houve otimismo quanto ao seu potencial, dez anos após o seu batismo, vemos que muitas falharam, em algumas dimensões. Competir com gigantes globais que têm, muitas vezes, recursos quase ilimitados não é sustentável. Muitas experimentaram e estão a experimentar estas contradições na pele. Muitas falharam, enquanto outras estão a aprender o que implica construir alternativas sustentáveis e a corrigir a sua trajetória. Um exemplo é o da Ampled, uma plataforma cooperativa para músicos e músicas em alternativa às gigantes tecnológicas Spotify ou Bandcamp, que faliu em 2023, mas de cujas cinzas nasceram duas plataformas cooperativas, as novíssimas Subvert e Mirlo. As minhas pesquisas demonstram que gerir a democracia interna, desenvolver e, ao mesmo tempo, manter a tecnologia de plataforma, expandir o seu mercado e obter financiamentos suficientes, são alguns dos desafios mais sentidos por estas empresas.

No entanto, o futuro dos movimentos sociais e de um modelo de trabalho diferente passa pela sua sustentabilidade económica e pela criação de condições económicas que permitam às próprias lutas avançar e ganhar terreno. As plataformas cooperativas representam uma experiência importante, a nível mundial, neste sentido. Estão a tentar construir um modelo económico decididamente melhor, mesmo nos casos menos radicais. Algumas encarnam valores profundamente alternativos – desde o respeito pela pessoa trabalhadora-cooperante, que muitas vezes se torna tutelada e proprietária, até à luta pela justiça climática e à superação da cultura patriarcal – e tentam resolver as contradições a que qualquer ação coletiva está sujeita na conjuntura atual. A democracia, muitas vezes, custa tempo, em mercados que exigem decisões muito rápidas. Muitas cooperativas operam sem o capital necessário para desenvolver tecnologia simples e eficaz, o que torna o desenvolvimento das suas plataformas mais difícil, mais lento e obriga-as a depender da interface das plataformas que gostariam de substituir, como a API8 da Google. Algumas veem-se na necessidade de contratar mão de obra barata do Sul Global para desenvolver as suas plataformas e manter a concorrência. Várias pessoas co-fundadoras destas cooperativas experimentam a íntima contradição, de memória “Luxemburguiana”9, entre tentar criar melhores condições de trabalho e a auto-exploração, chegando ao esgotamento.

Outras estão a repensar seriamente as relações de género, como mostram as pesquisas sobre as Worker Owned Intersectional Platforms10, na Argentina e no Brasil. A investigação pode e deve apoiá-las, compreendendo melhor os seus desafios e co-pesquisando em conjunto possíveis soluções para os seus problemas de sustentabilidade financeira, ajudando-as a crescer e a definir os seus valores e práticas organizacionais. O movimento cooperativo, no seu conjunto, não pode deixar de enfrentar os grandes desafios do nosso tempo e da transição digital, e as experiências das plataformas cooperativas estão, em muitos aspetos, a pagar o preço da tentativa corajosa de construir outras economias no campo de batalha do capitalismo digital (Into the Black Box, 2021).

8 NT: API, acrónimo de Application Programming Interface, em português significa Interface de Programação de Aplicações. Simplificando, trata-se de um programa que envia e recebe informações entre um site ou aplicação e as suas pessoas utilizadoras. Por exemplo, ao comprar um produto numa loja online e ao iniciar o processo de pagamento através do cartão, a API faz uma ligação com o banco para se certificar de que aquele cartão é válido para efetuar o pagamento.


9 NT: Faz-se aqui referência a Rosa Luxemburg (1871-1919), filósofa e economista marxista polaco-alemã.


10 NT: Plataformas intersetoriais de propriedade das pessoas trabalhadoras.

A revolução da inteligência artificial coloca um desafio adicional ao movimento cooperativo, que, mesmo nesta frente, ainda tem de desenvolver soluções capazes de permitir que as suas empresas sobrevivam e sustentem visões tecnológicas radicalmente alternativas.

Estas questões e muitas outras, desde a construção de novas subjetividades entre as economias digitais alternativas, à utilização da IA em contextos de guerra e, em particular, ao desenvolvimento de uma inteligência artificial cooperativa, serão discutidas na 11.ª conferência do Platform Cooperativism Consortium, a realizar-se em Istambul de 11 a 14 de novembro de 2025. A conferência, que estamos a organizar juntamente com Trebor Scholz, será acolhida pela plataforma cooperativa Needsmap, e será também lançada em breve uma chamada para artigos para pessoas ativistas, académicas e cooperativistas empenhadas nestes campos. Qualquer pessoa que queira repensar radicalmente a relação entre pessoas, tecnologia e dados, para além das guerras e do neoliberalismo, é mais do que bem-vinda.

Referências

Albarnoz, Bélen, Ricard Espelt, Rafael Grohman, and Denise Kasparian. Digital Solidarity Economies. International Policy Review. 2024.

Benkler, Yochai. The Realism of Cooperativism. In Scholz, Trebor, e Nathan Schneider (org.). Ours to Hack and to Own: The Rise of Platform Cooperativism, a New Vision for the Future of Work and a Fairer Internet. OR Books. 2017.

Eccher, Laura, L’algoritmo democratico: come i tassisti bolognesi hanno creato l’alternativa a Uber. 2024.

Fairwork

Fraser, Nancy. Cannibal Capitalism. Verso. 2022.

Gawer, Annabelle, e Srnicek, Nick. Online platforms: Economic and societal effects. 2021.

GKN for future.

Into The Black Box. Platform Battlefield: Digital Infrastructures in Capitalism 4.0. 2021.

Id, Futuro Presente. Red Star Press. 2024.

Platform Cooperative Consortium. Directory.

Scholz, Trebor. Own This! How Platform Cooperatives Build Democratic Digital Economies. Verso. 2023.

Id, What 2024 we built together. 28th December 2024.

Semenzin, Marco e Devi Sacchetto. Storia e struttura della costituzione d’impresa cooperativa. Mutamenti politici di un rapporto sociale. Scienza&Politica. V. 26. N. 50. 2014.

Srnicek, Nick. Platform Capitalism. Polity. 2017.

Tortorici, Stefano. Cooperative Roots for Climate Justice. Istitute for the Cooperative Digital Economy. New York City. 2024.

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