Tecnologia e emancipação: há cinquenta anos, o futuro

Luís Bernardo, Oficina Global

Tempo aproximado de leitura: 11 minutos

De Wakanda a La Moneda

“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
Arthur C. Clarke, Terceira Lei1.

A tecnologia é neutra. Este é o credo fundamental emanado das profundezas do Silicon Valley: de Musk a Zuckerberg, passando por imitadores de menor nomeada na Europa e na Ásia (a América Latina e a África não entram no jogo – o subdesenvolvimento também é neutro e intransitivo?), o slogan move fast and break things2 depende da neutralidade moral inerente a toda a tecnologia. Um telefone pode servir para detonar uma bomba ou salvar uma vida. A internet é a mais importante tecnologia de preservação, transmissão e criação de conhecimento já criada, mas também serve para traficar seres humanos. Dito de outra forma, a tecnologia é sempre um meio e nunca um fim. A tecnologia é neutra.

Na vida real, estas certezas esbatem-se. Há uma diferença clara entre tecnologia e magia. A tecnologia só é indistinguível da magia quando a democracia se ausenta. A neutralidade teórica da tecnologia depende da sua separação dos sistemas sociais e políticos que lhe conferem significado e determinam os seus usos. Na prática, um algoritmo não é neutro; é sempre político, apesar das certezas absolutas dos seus programadores. Despedir trabalhadoras deferindo a decisão humana para um sistema algorítmico só pode ter uma aura de neutralidade porque beneficia alguém. A diferença entre meio e fim é um problema de perspetiva. Podemos mobilizar vários exemplos contraditórios para pensar como a tecnologia acelera e trava a procura de alternativas. A ficção é, aqui, um oceano menos estranho que a realidade.

Olhemos para Wakanda, um dos cenários mais criativos do universo Marvel. T’Challa é o Pantera Negra (o seu nome de super-herói), monarca e líder contestado, atravessa uma barreira electromagnética e revela uma sociedade afrofuturista3. O recuo tecnológico tradicionalmente associado ao continente africano é eclipsado por arranha-céus, naves flutuantes e uma civilização cujo sistema político permanece mais ou menos apagado, mas na qual a tecnologia é um bem comum.

1 Arthur C. Clark escritor e futurólogo, ficou conhecido com a obra 2001: Odisseia no Espaço (adaptada ao cinema por Stanley Kubrick) e Encontro com Rama (1973).
2 Um slogan popularizado por Mark Zuckerberg, fundador da Facebook (atualmente Meta), para justificar a inovação como fim em si mesmo.
3 O afrofuturismo é um movimento estético e filosófico que procura refletir acerca da ciência e tecnologia a partir da experiência histórica e diaspórica africana, especialmente afro-americana. Octavia Butler, NK Jemisin ou Janelle Monáe são exemplos de artistas com trabalhos afrofuturistas.

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Janelle Monae: “Many Moons”

Agora, olhemos para Santiago do Chile. Corre o ano de 1971. Salvador Allende resiste, embora o fantasma de Pinochet esteja a aproximar-se do Palácio de La Moneda, residência oficial da Presidência do Chile. Com que meios? Cibernéticos, claro. O projecto Cybersyn encontra-se algures entre a mente de Stafford Beer4, o mais importante pioneiro da gestão cibernética, e a implementação concreta, com direito a um centro de controlo parecido com a ponte da USS Enterprise, nave espacial protagonista da série televisiva Caminho das Estrelas. Quinhentos telétipos, distribuídos ao longo do Chile, comunicam com o centro de controlo e inauguram uma era de possibilidades. Controlo democrático sobre os meios de produção? Sim. Um plano bem-sucedido? Nunca saberemos. Antes dos famosos Chicago Boys5, os esquecidos Santiago Boys6, como o historiador da tecnologia e crítico bielorrusso Evgeny Morozov veio a chamá-los, procuravam mobilizar um enorme aparato tecnológico para rumar ao socialismo cibernético7. Engenheiros, radicais, utópicos. Uma mistura que nos devolve às experiências cooperativas do séc. XIX. Aqui, não há magia. Esta tecnologia é muito avançada e muito concreta nos seus meios e fins. Fadada ao fracasso? Talvez não. Allende, pouco antes de ver a sua existência física detonada pelas bombas do fascismo, afirmava que “mais cedo que tarde, abrir-se-ão as grandes alamedas pelas quais passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”. Ou, pelo menos diferente.

4 Criador das ideias de gestão cibernética e consultor contratado pelo governo de Salvador Allende para responder aos desafios da transição para o socialismo no Chile.
5 Os Chicago Boys foram um conjunto de economistas chilenos, formados ou influenciados por Milton Friedman e pela escola económica da Universidade de Chicago, que tiveram um papel decisivo na política económica da ditadura de Augusto Pinochet.
6 Grupo de engenheiros chilenos defensores da aplicação de soluções tecnologicamente avançadas para os problemas aparentes da gestão socialista, como a planificação.
7 Morozov documentou a história do projecto Cybersyn numa série de acesso livre.

Uma simulação 3D da Sala de Operações do projeto Cybersyn: um local físico onde a informação económica deveria ser recebida, armazenada e disponibilizada para agilizar a tomada de decisões. Foi concebido de acordo com os princípios da Gestalt para proporcionar às e aos utilizadores uma plataforma que lhes permitisse absorver informação de uma forma simples mas abrangente.

Avancemos cinco décadas. A partir de 2021, Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da República Helénica, apercebe-se de que as empresas Big Tech – alcunha popularizada por Morozov – são diferentes das outras. A Amazon, em particular, ameaça os postulados mais básicos do capitalismo: ao invés de ser uma empresa com poder de mercado, é o próprio mercado. Transcende as instituições capitalistas e retorna, em versão moderna e digitalizada, ao feudalismo. Entramos na Amazon e já não nos vergamos aos pés da oferta e da procura. Vergamo-nos aos pés de Jeff Bezos e da sua capacidade de extrair rendas cognitivas. A tese é explosiva e plausível, embora improvável. Ao mesmo tempo, Shoshanna Zuboff, socióloga, cunha o termo “capitalismo de vigilância”: se não pagamos com dinheiro pelo uso do Facebook, pagamos com atenção, viciamo-nos em dopamina e entregamos a nossa autonomia aos novos titãs digitais. Os barões ladrões do séc. XIX tornam-se memórias distantes e pitorescas. No grande arco da história contemporânea, as explosões sobre La Moneda ecoam sobre o tecnofeudalismo e o capitalismo de vigilância.

Da CNUCED a Wakanda

“A única maneira de descobrir os limites do possível é aventurarmo-nos para além dele, rumo ao impossível”.
Arthur C. Clarke, Segunda Lei.

8 A primeira edição do Pantera Negra data de 10 de Julho de 1966; a transmissão do primeiro episódio do Caminho das Estrelas, nos EUA, data de 8 de Setembro do mesmo ano.
9 Disponível aqui.
10 Texto original disponível aqui.
11 Criada em 1964 para contrabalançar o poder do Norte sobre o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

12 O Fairphone é um smartphone modular e produzido com recurso a matérias-primas certificadas como procedentes de comércio justo. Ver mais informação neste número da revista.
13 O Framework é um computador portátil modular explicitamente desenhado para combater o problema da poluição electrónica e da recusa do direito à reparação por quem comprou aparelhos electrónicos.
14 O direito à reparação é um movimento comunitário de reivindicação dos direitos de consumidores sobre os aparelhos que compram: visa promover a reutilização, reparação e recondicionamento de pequenos e grandes electrodomésticos.
15 A obsolescência programada é a limitação artificial do ciclo de vida útil de um produto. A limitação de atualizações de segurança para um sistema operativo é um exemplo de obsolescência programada.

Em 1974, a USS Enterprise tem a mesma idade que o Pantera Negra (oito anos)8 e a Declaração por uma Nova Ordem Económica Internacional (DNOEI) acaba de nascer9. São tempos tumultuosos, em que a soberania do Sul – o Terceiro Mundo, nas palavras de Alfred Sauvy10 – promete não ser (apenas) hipocrisia organizada. A Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento11 faz cócegas, timidamente, à hegemonia intelectual das multinacionais do Norte sobre a tecnologia. Não há ilusões – a soberania económica caminha de mãos dadas com a soberania tecnológica. Hoje esquecida, uma das propostas mais radicais da CNUCED envolvia a transferência de tecnologia entre o Norte e o Sul. A OCDE opunha-se. A tecnologia era neutra, mas apenas se ficasse em mãos seguras. Em mãos incertas, a tecnologia confere, às suas detentoras, uma perigosa ilusão de agência. Em 2020, a pandemia de COVID-19 e a produção de vacinas mostravam que as grandes alamedas ainda não estão abertas. Hoje, a transferência de tecnologia tem outro nome: direitos de propriedade intelectual.

Há cinquenta anos, a DNOEI expressava, de forma poupada, o status quo ante: “Os benefícios do progresso tecnológico não são partilhados equitativamente entre todos os membros da comunidade internacional”. A solução, para os proponentes da NOEI? “Dar, aos países em desenvolvimento, acesso aos resultados da ciência e tecnologia modernas, e promover a transferência de tecnologia, além da criação de tecnologia autóctone para o benefício dos países em desenvolvimento nas formas e de acordo com procedimentos consentâneos com as suas economias”. O radicalismo da NOEI é indistinguível do pragmatismo de quem exige o direito à dignidade. As respostas violentas dos seus opositores, como Ronald Reagan, sugerem que o medo irracional de uma Wakanda escondida era menos disfarçável que hoje, cinquenta anos passados sobre uma ordem internacional centrada na proteção de oligopólios tecnológicos. Entretanto, a tecnologia autóctone adquiriu muitos nomes. Das LG e Samsung sul-coreanas às BYD e Huawei chinesas, a tecnologia autóctone é uma certeza. A tecnologia como bem comum? Uma impossibilidade.

Talvez a autonomia coletiva e a soberania democrática também sejam, em certo sentido, mágicas. As mãos que redigiram a DNOEI não imaginavam, decerto, que a tecnologia modular e o direito à reparação seriam portas de entrada para um debate mais amplo sobre a tomada de controlo dos meios de computação. Salvador Allende não imaginaria que, algures na Internet, a partilha de ficheiros com instruções para impressão tridimensional poderia ser uma forma de criar comunidades para lá da mercadoria. Embora o controlo dos meios de computação ainda se encontrem para lá do uso de um Fairphone12 ou de um portátil Framework13, a modularidade é um passo para trazer a tecnologia de volta à terra. Não é magia. É política. O direito à reparação14 é a solução política para a obsolescência programada15.

Cyborg, de Solen Feyissa

Wakanda, tecnologia e emancipação

“Quando uma cientista distinta e de provecta idade afirma que algo é possível, está, provavelmente, certa. Quando diz que algo é impossível, está, provavelmente, errada”.
Arthur C. Clarke, Primeira Lei.

Podemos partir de Wakanda para uma discussão sobre tecnologia e emancipação? Sim, podemos. Não precisamos de debater as vantagens de moléculas fictícias ou naves de aspecto futurista. Podemos concentrar-nos em perguntas concretas: temos direito à tecnologia? Podemos democratizar a tecnologia? Podemos mobilizar a tecnologia para o usufruto coletivo?

Sim, temos. Sim, podemos.

Temos direito à tecnologia porque ela resulta de esforços coletivos e a sua privatização crescente tem resultado em banalização, estagnação e merdificação16. A democratização da tecnologia é uma resposta possível a estes abismos. A mobilização da tecnologia para o usufruto coletivo será uma consequência dessa democratização. Um mundo onde cabem muitos mundos também é digital.

Binti de Nnedi Okorafor.

16 Ideia avançada por Cory Doctorow, escritor, que captura a perceção generalizada de que um serviço ou produto pioram a cada versão ou atualização, por razões que são alheias a quem usa esses serviços ou produtos. A rede social Twitter, especialmente após ser adquirida por Elon Musk, é um exemplo. Ver entrevista com o autor neste número da revista aqui.